sábado, 15 de dezembro de 2018

Doce Noturno

      Rio Sena 



“Você também me lembra a alvorada
Quando chega iluminando
Meus caminhos tão sem vida”
Cartola

Vive-se a ironia desprovida de vida, ir lá no fundo,
Escavar a alma, atracar com unhas e sede − O copo.
O veneno da maldição, combinar morte com dinheiro,
Esfregar mãos de felicidade, contar os feitos,
Esconder os defeitos da dor, promover a vida,
Escrever no face e se glorificar do intento.
O poder de contrariar a ignorância do cérebro,
A inteligência do berço, do embalar, enlatar e aprontar.
Toda compota tem seu apodrecimento,
Toda maldade é o que se redime
Nem sempre é o perene o que se persegue,
A caça é o que pode morrer engasgado.
É o fim dos tempos logo ali,
Atrás da noite vêm as luzes,
O sol tardio é a dor infinita,
De tanto ler o ver é insignificante.
O que pode estar oculto,
É como estar abrindo a cabeça,
O dia é nos olhos unidos,
O corpo, o prazer é o texto em cor.
Depois deste dia, uma flor é como a dor,
Desmancha a métrica confunde o ritmo.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Estrangeiro

                                      Toledo - Espanha



O teu ódio é primário, é banal e mitificador,
Meu amor é universal, banal, é livre.
Nossas diferenças? nada disso existe, é fonte de vida,
Energias que divergem, falas que destoam,
Onde o teu ódio anda, meu amor já se apossou.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Movimento(s) de Leitor

    Claude Monet -Soleil levant


“A arte só está próxima do absoluto no passado, e é apenas no Museu que ela ainda tem valor e poder.”
Maurice Blanchot

Meu grupo é tão seleto que não existe, vivo no limbo da desatenção, permaneço só. A multidão amordaça, é calada, dizimada que nem cauda da serpente explodindo por balas perdidas. Vejo no espelho o movimento do corpo, a luz difusa, a névoa de um domingo quase sol meio cinza. Corro louco, feito refugiado, do meu próprio país para ver o mar. Não olho para trás nunca mais é forte demais. Fuga dos sonhadores, minha alma dentro do casaco cinza que atravessa o frio sem se entregar. Depois, nado fundo para não mais voltar. Jamais. Sigo em braçadas até o fim do livro. Leitura voraz, audição do silêncio. A mesma cena que passa aos olhos é um filme autoral, a mesma cruz um sonho insistente de causar questionamentos. Ouço o tilintar do pensamento, notas dissonantes, ritmo das pernas, braços em sincronia ao bater na água. O presente é apenas um arremedo do passado aos que não resistiram às tempestades. Demarco uma linha imaginária na tela, traço fugas, planejo novos roteiros em novas cartografias do coração. Enfim, terminei a leitura e o céu abriu o clarão das ideias.

domingo, 25 de novembro de 2018

Quase Dezembro

     Barcelona - música de rua




Poeta, poética, zuar à luz meu céu,
Através do canto entoo a cor da boca,
Que penetra o corpo, se volta para a alma,
Reluz no desejo pagão, no ensejo de voo sem asas.

Ótica da vida, luas luz meu sol,
A vida é cheia, logo ali um diz, que gordura,
Outro diz, que velhice, outra diz que pele,
que resseca com a dor de tanto dizeres.

Narrativa, falatório no vácuo da solidão,
Contrariado, ouve o silêncio dos que falam,
Todos ao mesmo tempo narram sem se ler,
São felizes e riam de suas narrativas vazias.

Tempo, memória do resgate, coração em alerta,
Nem toda história consegue ver o fundo dos olhos,
Não esquecer é lembrar, viver é permanecer atento,
O irrealizado é um detalhe do não retornar ao passado.

domingo, 4 de novembro de 2018

Observador da sacada





     Aigues-Mortes - France




“Adorava poder mostrar-lhe o filme, mas, por outro lado, sei que tem outras coisas na cabeça.”
(Win Wenders sobre o Papa Francisco)

Ainda procura ver os rostos, nada pessoal, ele ainda busca enxergar todos em sua individuação, a captura do anonimato é a imagem oca, ele busca ver os olhos dos anônimos.
As imagens confundem o centro, rasga os lados, alarga os braços, entorna o vinho sobre o mundo,
Ele procura os olhos, ausculta o som do mundo,
Ele vigia os sentidos, vê a face do desconhecido, os olhos na multidão é como o tempo que não tem dimensão única, interminável aos olhos a imagem-tempo.
Ele ainda vê tudo como observador privilegiado, o mundo não muda, mãos que matam mudam.
Ele busca o movimento da humanidade, a contínua ida ao desconhecido do Ser, procura o olhar que retorna em sua finitude.
Ele é o observador do que se esgota, do tempo que permanece movente, percebe o transmutar e o que permanece intacto.
O movimento é como a música no filme, um travelling que no silêncio faz a imagem ser os olhos dele,
Ele permanece a olhar o tempo dos olhos esquecidos, dos que creem e os que vivem a pensar nas possibilidades de vida.
Os olhos dele é o signo, que na cena entranha o desconhecido, a imagem-movimento que se dispersa na multidão no momento certo em que o silêncio solapa em meio aos olhos presos na linha do tempo que desfia a ilusão da permanência.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Um Dia Depois

                                    By António Paim - Rouem



"Nesses dias há grandes rebanhos silenciosos de carniceiros negros vigiados pela polícia, quando a noite cai...”
Paul Nizan


Se toda dor, toda tristeza percorresse o país o que seria de mim? todo em lágrimas e dor, na veia em fusão com águas dos rios, do mar que afasta a vida da vida. Então, o que seria dos olhos sonhadores, mordido por tubarões, aves de outro mundo, botas que pisotearam, afundaram mãos e braços até não ter mais respiração.
O que seria do corpo cansado, esfacelado da luta, da fuga do mal, do não querer matar, não usar o gatilho que atira na vida? Querer voar o céu do país, inventar um paraíso para o coração, ficar menos triste, sair da prisão que só a falta faz quando tudo se transforma em ódio, faz o vento espalhar dores e mortes esquecidas no cotidiano, queimar a pele com o ácido que mata a floresta, que afunda barcos, que a presa mais atenta não consegue mais fugir da dor imposta. Onde anda a história contada lá atrás? Não sei.





sábado, 13 de outubro de 2018

Invisíveis

                           Anjo caído. Jean Michel Basquiat. Catálogo da exposição no MAM Basquiat de Paris.



O que há com aqueles companheiros que esperam calmos e silenciosos ali na plataforma, tão calmos e silenciosos que colidem com a multidão em sua própria imobilidade”   

Ralph Ellison (Homem invisível)


Não engane os vivos, a prova de amor mais bela, a oculta vem para depois do medo, o invisível luta o que pinta, quem escreve morrerá nunca. A música que toca, o texto na tela não é como marca imposta no corpo. Somos milhões pelo mundo, nunca morremos, desaparecemos, cherie. Aos poucos, nos unimos no fundo, profundezas da dor, então, estamos vivos novamente. Continuamos dançando, pintando, o canto nunca silenciará. Somos criaturas invisíveis, somos vozes e corpos que renascem da dor. Somos a mistura da arte com a vida que é ofuscada, da voz que é aterrorizada, vozes surgem de todos os lados do mundo, a invisibilidade é a poética da resistência. A liberdade está dentro dos olhos tristes, da negritude, da brancura e de todas as cores nos dentes, da pele que envelhece. Os músculos no rosto enrugado que não apaga o brilho da vida.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Paradoxo das Sincronias - Nunca se está sincronizado totalmente com o mundo

     Filme - Para sempre Mozart




“Mas sem a integração da crueldade pela vida, também não haveria vida.”
Edgar Morin 


Recolher a dor, deixar o tempo tomar conta do instante vivido, deixar de ir ao encontro do que anos atrás se fazia presente, quando a memória podia ser a guardiã. Nesta viagem de agora não estar nem no início e já temer o fim abrupto do mal que surge no horizonte: estrondos e explosões. O tempo que não foge do corpo, está colado nas paredes da alma, invisível é parte de todo o universo. Um breve esquecimento, o tempo que te salva é o mesmo que passa sem retorno programado. É como ter o controle da memória sem mesmo saber o caminho certo por onde ela anda esse tempo todo. Reprogramar a vida, autoanálise, pensar que os encontros sempre foram parte importante da formação da pequena história de cada corpo. Aqui estou. Reflito sobre a capacidade de encarar a vida sem perder os fios que ligam a memória ao tempo.
Se o passado é feito de portas que se fecham, abre, independente do mundo exterior, que se apodera do signo, a palavra gravada nas lacunas do corpo e do pensamento a se mostrar na dor e completude. Então, o que dizer da dor, esse desvio do ato de encarar a realidade e ao mesmo tempo de desvendar a solidão do Ser no mundo?
Passo dias a pensar sobre alguns temas, a dor, essa massa sem corpo, essa estrela vista por dentro e por fora, essas cores que mudam conforme os dias. O tempo e a memória são o mesmo horizonte aos olhos, a razão do corpo se manter teso, pronto para nadar até o outro lado. De repente surge o momento em que me vejo dentro d’água, entre a respiração, os braços e as pernas que, no movimento contínuo, me levam ao pensamento sublime. O único Deus que existe para o meu Ser é o poder ser livre, poder pensar e me solidarizar com o mundo. Com o que resta dele. Os amigos partirão comigo? Alguns sim, outros ficarão no meio da guerra, a vida que suga até o último cigarro, a última lágrima.
O que pode estar acontecendo do outro lado? Esse é o único detalhe que escapa dá lógica das coisas tangíveis e das pensadas diante do mundo e do Ser no mundo. O desejo não se esgota em si, a vontade, fruto de um tempo em que o Ser se torna domínio absoluto da alma, da certificação de estar no início e no fim de si mesmo.
É como fazer seu próprio filme. Acontece que nasci no berço mais humano do século XX, do ventre materno nasceu a fome de viver à risca a vida em toda sua loucura. Não entrego meu pensamento livre ao ódio que tenta justificar o mal diante de sua falta de aceitar a diferença. Por isso, em alguns casos, a dor é mais latente, alguns vivem mais intensamente.
Gosto de pensar o texto movido por uma câmara imaginária, que aproxima mais e mais daquilo que tem o significado da linguagem; o que está visível, o que narra, e principalmente o que oculta, é o submerso vindo aos olhos do sentido. O que antes era esquecido, não visto, pode tomar o espaço mais preciso na narrativa.


sábado, 15 de setembro de 2018

Levitação-Imagem

    (Roma - do olhar imagem levitação)



“Iluminei a escuridão de minha invisibilidade – e vice-versa.”
Ralph Ellison

A imagem eu não inventei, as cores eu não as criei, a técnica já existia antes de eu criar o método de levitar para fotografar, o método alpinista de captar imagens, detalhes que só conseguimos ver de uma grande lente, movie, de movimento, tomadas aéreas.
A levitação-imagem é aquela em que busco fisgar naquilo que o olho sonha ver. Só ele, o olho naquele ângulo, a partir de uma música ao fundo (inaudível até hoje quando volto a sonhar), em um estilo que pode arrebatar até o mais cético em relação à existência de coisas sobrenaturais. É mesmo, sobrenatural, eu levito (mas isso tem uma altura, no máximo 15 metros), isso causou espanto na primeira vez quando subi até a torre de um velho prédio público, e com minha lente diminuta de um celular, fui de um lado ao outro, cercando a torre, discorrendo meu pensamento, o olhar que se afinava na captação das imagens possíveis e as que já não existiam mais. O tempo se estendia, eu conseguia compor as imagens do mesmo prédio em diferentes épocas. Eu, um ser levitando, invisível aos olhos do mundo. Sem cansar, fiquei lá em cima, creio que altura era de 10 metros, depois desci sem que ninguém percebesse minha presença. Um invisível entre os passantes. Misturei minha pele na dos outros, voltei à terra e saí caminhando entre os transeuntes.
Não contei a ninguém, guardei esse segredo da “imagem levitação”, nome que escolhi para esse método que nasceu do pensamento, do lado mais obscuro da alma de um homem qualquer, de repente se torna o voo do olho, o corpo que vê.
Fui logo aos livros, nada especial, não tentar entender o fenômeno, mas compreender de onde eu tirei que poderia levitar. Essas coisas estranhas já aconteceram comigo, como aquela de eu me encontrar em uma loja de piano e pedir para entrar e ver o piano, e logo que sentei na banqueta em frente ao piano comecei tocar Chopin. Depois algumas peças de Mozart, nada excepcional, atônito fiquei, isso durou uns 3 anos, lá eu ia uma vez por semana - em meu sonho - na loja. Já era um velho conhecido do vendedor, era a atração invisível, tinha palmas do vendedor e dos fantasmas. Passou. Agora, quase 2019, me encontro a levitar em imagens e pensamentos, do alto faço a cartografia da vida que vive lá embaixo.  

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Perdido





“como um automóvel de luxo que atropelou um asno.”
Benjamin Péret

Eu tinha os discos dele, os filmes do Jim Jarmusch, a voz rouca da noite, eu tinha a idade dos homens que perdiam a voz de tanto gritar, a bebedeira dos esquecidos, a ilusão dos enganados, das noites dos sucumbidos. Tinha tudo dele, a morte na alma, o coração apaixonado. A flor do lado mais escuro dos olhos, a verdade esfacelada, eu tinha fome de vida. Eu tinha tanto sorte, morria e renascia em todas as paixões, em todas tentativas de enriquecer bebendo com amigos e ir dormir com a solidão. Eu tinha tanta carência, acordar no meio da noite e a achar que já era hora de ir dormir o sono eterno do Nada. Eu tinha tanta gana, queria arrancar o ódio dos donos do poder e só me contentava com a morte inevitável deles. Eu era imortal. Eu tinha tanta dor no corpo que minhas lágrimas já nasciam e secavam nos lábios de minha namorada. Eu tinha tanta esperança. Largava tudo em nome de minha vida. A liberdade é amiga dos que têm mais coisas para pensar, e hoje, o lamento é uma música do silêncio, a fome é dos não derrotados, é o poder do medo e da vontade de continuar no tempo sem medo de rir da morte e da vida.

domingo, 26 de agosto de 2018

Invisibilidade

     By Pancetti - Marinha - Saquarema - 1955.

Ninguém sente, nem olha, a frente é que se pressente,
A imagem distante fica de frente, o tempo que existe,
A lente que perfura o coração exausto, batimentos da vida.
O que nem todos percebem é que o tempo é um tanto diferente.
Ele, sem as rédeas humanas, é o pêndulo dos poetas,
Torna invisível tudo que ata, entre nós, a âncora estende a vida,
Do barco, o mesmo fluxo dos trajetos,
O desconhecido é que está atrás da sincronia do tempo.
E ninguém olha mais por dentro, está tudo do lado de fora,
Em frente, a imagem segue reunindo fome de signos,
Milhões de gente, e nem tudo é vida.
Às vezes mata por não aceitar o Outro.
Ninguém diz mais que a verdade depende da vida,
A vida é um coração frágil.
Nem tudo é visível, o que se alimenta da razão que inventa,
É o real que vira semente do imaginado.  
Nem todo bem é o todo que é, parece ser diferente,
Melhor é a invisibilidade sincronizada do Ser que se refugia no tempo.
Nem toda noite é escura, nem todo dia é dia.
Toda semente há de viver além das forças das mãos que envenenam,
Da água que seca, o fogo que avança e mata mais a frente.
Nem tudo é dor por doer, tem a morte que dribla a vida,
É da vida, esquecer um pouco do fim sem tempo certo para acabar.

“A invisibilidade [...] dá à pessoa uma noção ligeiramente diferente do tempo.” Ralph Ellison






domingo, 12 de agosto de 2018

Devorador de rosas

     By Bedframe De Livros


“O que é primeiro não é a plenitude do ser, é a fenda e a fissura, a erosão e o dilaceramento, a intermitência e a privação corrosiva.”

Maurice Blanchot



Rosa roseira, escravo dos espinhos, o homem tira o véu da cabeça, deixa à amostra sua identidade, não teme os olhos, nem o odor dos dias tristes. Acorda entre livros, dorme entre sonho e medo, descobre os caminhos do imaginado. 

Manhã de mate:
Matinal, noturno de olhos ensebados, guarda-ressaca.
Manhã de sol:
Livro aberto, o que cata tela de música, linguagem dos sentimentos diria Thomas de Quincey do futuro.
Impressão digital na fronte, mágoa de domingo,
rio que desce, corre o céu, prédio de janelas escancaradas, seios no parapeito, beleza diante da câmara, olhos negros,
riso lúdico, mãos nos cabelos, o teu corpo é uma flor do presente. 
Tarde cinza:
O escavador de sonhos, vive em busca do pensamento, o ato de pensar ainda não começou a pensar, e Artaud jamais esqueceu as perdas do viver


A verdade é que me coloco a uma distância de quinze a vinte anos à frente deste tempo.”

Thomas de Quincey


*(Reler, texto de agosto de 2013, o texto movente no tempo.)


  


sábado, 23 de junho de 2018

Paz e Trégua


“Estávamos cansados de todas as coisas, cansados especialmente de ultrapassar inúteis fronteiras.”
Primo Levi

Meus livros. Leio e reescrevo o pensamento solto que existe na leitura que faço do ainda existente das páginas dos livros escolhidos assim por mim.
A dor é o fim, minha alma é como amarelecido das folhas surradas, manchas do café, do rastro do vinho, da solidão de ler o fim de “A trégua” de Primo Levi. Um dos mais impressionantes e dolorosos fechar de páginas que tive. E se eu fosse o editor, certamente, choraria ao cabo de sua confecção. Isso não acontece mais, terminar uma edição na cumplicidade do fim e o início de outro momento, no tempo dele existir, a reprodução parece ser a solidão que não se esgota. O livro está dentro desta história.
Na próxima guerra não haverá renascer, os escombros serão do tamanho da dor da Mãe-Terra arrasada. Morta por seus filhos, ela no secar dos olhos, sacrificará a existência em nome dos ideias que se perderam nas religiões, raças, e no outro lado político, destruidor da diferença.

O poder e a vontade “Ser” o “Outro”, o retrato diferente dos olhos de Levi no final de ”O despertar”, talvez seja para além da imagem, da ficção e da linguagem afiada dos manipuladores do mundo. Talvez tenhamos a vida depois disso tudo, dos nacionalismos revestidos de ética, e boas mentiras hão de passar a vigorar nas fronteiras dos corpos. Estamos imersos. O Território poderá ser apenas a linha imaginária que se perdeu no coração dos corações puros que retornam às escrituras, onde deus existe um homem há para se fortalecer e se impor. Onde a fronteira finca sua cruz, sempre teremos um grupo, uma cabeça a pensar, e que sua vida é e pode estar no fim. Por que outro um existente nos olhos do lado de lá pode ser uma ameaça à vocação única de ter direito de estar demarcado na fronteira do lado de cá. 

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Na outra margem

     Toulouse - France




“Nosso futuro é tão irrevogável
Quanto o rígido ontem.”
Jorge Luis Borges
(do poema Para um versão do i ching)

A dor é minha, a semente que guardo nos olhos, fonte de energia que trago no peito, o alarme da vida, o sopro do coração, a braceada perdida no tempo, o levante dos invisíveis, o Nada e o nadar no mar, a perdição dos esquecidos, a morte dos ricos, o apodrecimento dos pobres, o casamento dos notívagos que, soturnos, vagueiam noite adentro até encontrar o primeiro templo e lá jurar amor eterno a Deus e esquecer seu Outro, o lado da vida está aberto ao desconhecido.
A miséria de poder ver-se nu em águas de um rio sujo que preserva a vida dos homens e mata os peixes já sem oxigênio. Um dia esse poema matará o homem em sua redoma de dominar a natureza. A irredutível vagabundagem dos poetas em quererem ser malditos e esquecer a linguagem dentro de si. O desperdício do olhar que não resulta mais em poética. A doença apressada em ódio de uma sociedade que se afunda em filas e fugas do sonho para viver só a realidade. Enumerar não uma só razão para atravessar o rio sujo, e sim várias para tentar escalar paredões e prédios tal qual o malinês imigrante.
Quase morto, vejo diante do sonho o espelho, o não acordar nesta vastidão destruída pelas águas que invadem uma cidade, todos a fugir para o cume mais distante; e lá, quase ninguém para conversar, encontro um velho sentado em uma pedra, imenso, dedos longos, esbaforido, olhar a salvo de um fim que nunca termina, nele  encontro o lado de todos os velhos amigos que morreram nessa travessia, todos os desconhecidos em suas fanáticas formas de viver, de torcer, de amar, de matar e desprezar o Outro. Me vi entre eles, saio do rio em direção ao velho ofegante, em plena forma de viver vou recitando uma canção até o seu encontro. − O fim não existe mais, a continuar vamos avante, de som em som cantamos a vida que está a começar, o tempo que não se difere de mais nada, ando invisível a tudo isso, por isso estou aqui deste lado do rio.

domingo, 6 de maio de 2018

Cromatismo dos sentimentos






“O temor de ferir e o medo de ser ferido estão nas próprias falas.”
Maurice Blanchot

A possibilidade de driblar a escrita, a ideia falseada num tipo de cromatismo andante, quase permanente contínuo, fugindo do sentimento, a se mostrar na própria linguagem de uma performance. A ida é proporcional ao tema, como se fora a combinação numérica, de linha a linha, na tela, o texto se forma, reconstrói o pensamento sem sair da ideia de outro texto que poderá não chegar em algum outro lugar, pois sua combinatória é ir no andar dos corpos, simétrico no lançar dos braços na água, no ritmo do nadar, do correr...ad infinitum, a contar que o tempo não se esgota, a configuração da linguagem poderá ir adiante, atravessar o oceano, descansar em terras de um dos últimos universalistas da história da música, morar ao lado de Saint-Saëns.
Poder acordar no som silencioso da vida que adormece na fuga, no domingo cinza de um fim de mundo tomado de vegetal cerebral, um afronto à flora, aos sons, onomatopaico, combinações de panelas e zum-zum de sirenes que protegem a saída dos criadores da vida.
A vida é uma combinação do desejo de fazer com a organização sentimental do criar dentro do modelo moderno, legado dos legítimos donos da cultura, e o desapego disso tudo que é a busca do limite da sensibilidade com a pureza da criação. Um novo constructo do fazer.
Volto ao abrir do dia, o acordar bem distante, na separação e proporção compassada e numérica dos olhos, os dedos que movem, atravessam o parque ainda úmido da noite, o cheiro diferente, a origem de seu corpo e o novo respirar bem longe dos caçadores de talentos, dos dromedários que foram cultuados pelos protetores dos museus. Os mesmos que impulsionam o ódio porta a fora, os mesmos que confundem arte com a moral, da caixa secreta de horrores e famílias que ainda brotam da botas sujas de lama e sem nenhuma aptidão para o ato de pensar e silenciar ao novo.
O que escapa dos sentidos domesticados é a ruptura com todos os sistemas, permanecer no caminho com todos os lados da vida em consonância às formas de linguagem que estão soltas no tempo.


segunda-feira, 30 de abril de 2018

Cartógrafo





Eu te olho através das lentes bêbadas da Solidão.
Amor se come com os pés,
Livro se lê com a fome.
As mãos carregam o resto de nossas vidas.
Toneladas de ideias, rugas identificam,
a solidão cartografa o amor.

sábado, 28 de abril de 2018

Nadantes

                                       Rio Douro 

“Universal como a violência e a morte, a dor nos iguala.”
Michel Serres

Milhões de pessoas em suas vidas, em casas, sós ou  acompanhadas, partidas, inteiras, felizes, tristes, por meio e metade de um tudo, e todos estão algures – lugar próximo deste mundo. Eu aqui, inteiro, em pedaços, parte do todo, nau perdida em sonhos, esperto para o amanhã. Fuga necessária para o outro lado do rio, braços e pernas aquecidos para entrar a nado e nado até o lado seguro da vida. Depois, então a me secar ao vento, de outro lugar, sem luzes difusas de restos e sobras do passado, feito no tempo que mete medo aos passantes. Passado e presente, entre roupas e dores alimentadas de promessas do outro lado de lá, do tempo que ficou marcado como se fosse dor de dente. Esquecido de tudo, estar prestes e se atirar nas águas que podem levá-lo longe, bem longe das verdades em compotas. A vida − depois de tudo − é um corpo que some a distância da ira dos que estão do lado de lá. No canto da boca existe um rio, a fuga, palavras, o que voa é o que fica no espaço entre o fim do olhar e o horizonte do pensamento.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

O Lado do Rosto

      Claude Cahun - 1928


“O inelutável não tem a inumanidade do fatal, mas a seriedade severa da bondade.”
Emannuel Levinas

Dentro de mim mora um Eu, um desconhecido fragmento do Outro lado do Ser. Se isso não bastasse, dentro de mim a energia que existe é que move meu pensar, não a energia que faz com que eu tenha todo conhecimento, pois ela não existe dentro do mundo, ou melhor, fora de mim. Um exemplo prático do cotidiano ilustra este exercício: dois dias atrás, em atividade, andei dizendo breves palavras ao público, o evento exigia esse ato de falar, meu discurso era simples, apresentar aos presentes o trabalho que realizei e que ajudei a acontecer, desfiz-me de toda carga do dia a dia e expus aos outros o trabalho de forma a apresentar o lado autoral aos seus leitores.
Bem, a partir dali, fechei um ponto que estava dentro, lá guardado do Eu, melhor, do que imagino ser parte dele, mas que só se torna realizável no acontecimento.
Mais tarde voltei ao meu Eu material, a redenção do corpo, o guardião do rosto, de cara viajei ao texto, a Emmanuel Levinas, onde o rosto corta o sensível e desnuda o lado adormecido da razão. Bati na minha própria porta do Ser, passei por cima das nuances filosóficas, sentei, peguei dois livros que estão surrados, mas pelo tempo de convívio comigo, entrei mundo adentro da questão mais difícil de ser conclusiva, pois dela, o que dela se faz existir está para além do Eu, está do lado de fora, a Ética.
Quando terminava algo, no passado, sentia, logo depois, o vazio a se instalar no corpo, como as pessoas se sentem quando acaba um grande evento, quando termina toda a energia naquilo que une e inevitavelmente irá mais adiante ter o fechamento.

Aprendi muito com o fim de tudo, aprendi mais com a solidão noturna, pois ali, depois de uma leitura, de um vinho, um café, um filme, talvez, o descanso para acordar antes mesmo do meu Eu. O corpo está neste imediato contato com a realidade, o Rosto, o de Levinas, está presente no meu cotidiano. Bem, daí vêm os afazeres para acordar o resto, cada um com seu mantra, diria outra pessoa. É e não é, porque para pensar “é preciso estar atento e forte” e enfrentar a única responsabilidade suprema que existe ao que está dentro, ir para o lado de fora com suas armas, desprovido do medo, ir à luta.




sexta-feira, 30 de março de 2018

Niilista da Paz

                       Apocalipse - (1265-175) - Calouste Gulbenkian - Lisboa



"Atirou-se contra os espelhos, como uma alma-de-gato cega."
Severo Sarduy


Vida, ó vida das cidades, Aleppo, Rio, saídas para o sol,
ruas de fugas, outros perdidos, mortes em nome do Estado: evocam − Eu e Tu, alusão de um Deus.
Se morre, mata-se em nome do Tu,
o Eu mata em nome da Paz.
Tenho dificuldade racional de compreensão dessas mortes,
morro por dentro, torno-me Niilista da Paz:
vidas perdidas em nome das armas, cruz no céu,
a terra penetra na carne do Bem e do Mal.
Tenho medo do azedo e do doce apóstolo,
tenho ânsia de vômito à verdade absoluta dos seguidores.
Prefiro caminhar sozinho, lá outros hão de andar ao meu lado.
Eu e Tu, é para além de um deus, é a personificação do crer e não crer na imagem forjada pelos homens.
Jogos filosóficos, resta-nos a dor da miséria alheia,
a palavra do homem contra a indecisão na vida, são jogos de vida e morte.
A linguagem − dia sim dia não −, salva o diálogo da escuridão,
por vezes preciso do silêncio dos perdidos, dos ateus, dos crentes, dos que duvidam da ordem.
Todos unidos, na estrada do por vir, o horizonte é o céu cravado de violência seletiva, dos que matam em nome de um senhor.
Prefiro andar sozinho do que crer na razão para encontrar o paraíso, nem perder o sentido para encontrar Deus.  

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Auto de fé da resistência

                       Lisboa - Ler Devagar





“Assim se explica que até nossos dias acreditem mais firmemente na existência de uma cor quimérica do que na de Deus.” Elias Canetti


Canetti, nasceu na Bulgária, judeu de origem serfadita, a língua materna espanhola, teve sua formação em mais de um lugar, circulou pela Inglaterra, depois Viena e adotou o alemão para escrever. Com doutorado em Química, a escrita literária nunca foi deixada de lado, tornou-se um estudioso da psicologia. Como Otto Maria Carpeaux[1] escreveu: “Precisava-se, aliás, de um esforço de reportagem literária para identificar a personalidade desse autor esquivo.” O romance que ofuscou os nazistas, que foi destruído na época da cegueira humana, Die Blendun – que ganhou em inglês o título Auto de Fé –, abriu meus sentidos nos anos 1980. Ainda hoje, volta e meia retorno a ele, o inesperado surge nas leituras e no que separa o leitor de uma grande obra. Logo uma obra que tem o personagem que se afunda em sua erudição, na incompletude do mundo, no que o torna humano e o tira da vida. Pois o cotidiano requer mais que erudição, às vezes um esquecimento quase que alienante da própria compreensão da vida.
Nem um pouco me sinto triste nos voos que faço em Canetti, penso, é minha autoanálise, meu veneno e água, um equilíbrio que me deixa ávido para continuar gostando da obra e apostando na vida. Sem me jogar com todos os livros no abismo da mediocridade, creio que um livro não é apenas didático, é poético, e todo signo que brota da linguagem, a construção de uma história é que salvam a memória para retornar a outros livros.
Um livro aniquila tudo que existe, a recordação deixa de existir diante do êxtase da leitura final, tudo acaba. Diante do inominável fiquei prostrado, misto de solidão com vontade de esquecer o presente. Logo eu, um presenteísta, anárquico, naquela época vivia às voltas com as cruzadas modernas da estética. Uma completa algaravia enlouquecida e sem nem um nexo lógico. Eles vinham e diziam, “que leitura mais obtusa, quase um misto de descendente de Musil com a decadência dos aliados de Heidegger”. A partir desse dia, do momento da apoteose da linguagem modernista, me senti o próprio guerreiro do esquecimento. Nunca fui ao extremo das coisas, do direito a dizer qualquer bobagem, perdido no fim do Brasil, a leitura foi a tentativa de compreensão do mundo.
Aí me vi em o Auto de Fé, de Canetti, logo este Kien, em que via todo mundo desmoronar na falta das unidades da estética do cérebro, a preservação da vida se dava através do livro. Pensei, sou ele e sou o outro lado. Dane-se, estamos saindo da curva do capital ortodoxo para o fundo dos 20 a 30 anos de pós-68. Ainda bem que só tive um percalço de lá para cá. Ainda vivo, retorno meus olhos, meu interesse ao autor, leio e releio sua obra...O romance do qual sempre quis ser autor não foi um Camus, foi um Canetti. Tomo meu vinho e retorno à elegância de sua linguagem.
Salve o leitor, o livro sempre existirá, em oposição à acepção ontológica da obra, o entorno da linguagem é quase uma fenomenologia existencialista da exclusão do leitor – pensava. Hoje penso o contrário. O leitor morre e o livro viverá esquecido. Os incêndios são esporádicos, os imbecis estão soltos e pensam que são guardiões da cultura no domínio da existência e criação. Um livro é o que te tirar do marasmo, mesmo o personagem mais misógino possível, uma construção da erudição é sinal da fraqueza das edificações que estão a esmorecer. Assim me sentia lendo e refutando aquele livro na primeira vez, até perceber os caminhos a que ele podia estar levando meu entendimento sobre os anos que tardiamente fechavam o século XX.
Canetti não subjuga o leitor a desistir, pelo contrário, ele é dos clássicos que nos dá alento para resistir aos livros que caem no abismo, aos livros que são incendiados, nas obras que são excluídas do mundo pela cegueira dos homens, que nunca deixará de existir.



[1] Carpeaux, Otto Maria. História da Literatura Ocidental, vol. 4. São Paulo: Leya, 2012.
Texto publicado no jornal Correio do Povo - Caderno de Sábado - 24/02/2018.



sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Ensaio dos Possíveis

            Art by Gleb Goloubetski


“Cada indivíduo é o centro do universo, e é apenas porque o universo está repleto de tais centros que ele é precisoso.”
Elias Canetti


Um belo dia, manhã, uma manhã cinza no dia de um homem, ele acorda. Os pensamentos são formados nas madrugadas, nos dias, no silêncio do sono. A sua formação não é uma enciclopédia, um compêndio, um quadro estático na parede sem cores nem relógios. O formato que se tem é que a vida é uma sucessão de acontecimentos. Teorias ao longo dos séculos.
Esse homem atravessou parte do ocaso do século XX, vivendo intensamente as mudanças sofridas e impostas no Ocidente. O Ocidente impôs. O pensamento no mundo ocidental, uma parte viva do mundo, que está na Complexidade de Morin, não serve mais como uma simples descrição de fenômenos, mas o é, também. Nesse belo dia, o homem percebe que é o mesmo dessas alterações, que é parte de uma mesma coisa, de tudo no mundo. Não é literatura; é a realidade esfacelando-se a partir do momento de cada manhã em que o homem coloca seus pés novamente no chão. A literatura é a mesma que salva o sonho de um dia acordar no absoluto dos conceitos. E como diria Morin, através da literatura o homem torna-se o que produz “pelas ideias”, e neste acordar que todos fins se mesclam com o hibridismo do ensaio. A vida é isso.
As ideias sobrevivem porque os homens as alimentam de novas roupas e novas informações e conforme as necessidades; os mesmos homens que as negaram tratarão de dar-lhes forma diante dos acontecimentos.
 As teorias sobrevivem porque os homens se espalham pela terra e, como diz Morin, o desconhecido não é apenas o mundo exterior e, sim, sobretudo, nós mesmos. As crenças nas verdades, na lógica ocidental, nos fatos e no Cotidiano da comunicação entre esse homem e todos pelo mundo afora e adentro, do Ocidente ao Oriente, da rua à casa, do real ao hiper-real, do conceito ao Imaginário[1], da linguagem à comunicação, e tudo na esfera do vivido, do jogo, permaneceu porque o visível passa do inteligível ao sensível e ao invisível. Lembrar de Heidegger, do “Ser” como a compreensão “indeterminada” e do mesmo modo “sumamente determinada”. Do homem que ao acordar personagem se dá conta de que ele compreende a palavra “imaginário” e com ela todas as derivações, as variações possíveis, ainda que essa compreensão pareça indeterminada. Inacabada. Esse imaginário povoa seus dias. Ele retorna ao “Ser” e em Heidegger: “O que compreendemos, o que se manifesta, de algum modo, na compreensão, dele dizemos, que tem sentido. O Ser, porquanto, é simplesmente compreendido, tem sentido”.
 Do possível ao impossível, esse homem, dentro da complexa colcha do pensamento, será sua única saída para o mundo. O seu mundo diante do que está em discussão, sendo que em um belo dia, esse homem acordou fora do apenas inteligível. Foi através da “brecha microfísica” que abrira o espaço para o sujeito se postar diante do objeto, diante do próprio decreto mal-aventurado da lógica ocidental, que percebeu que o acaso contribuíra para as suas novas manhãs.





[1] A partir de Castoriadis quando diz que no “por-vir-a-ser emerge o imaginário radical, como alteridade e como ‘originação’ perpétua de alteridade, que figura e se figura”. A Instituição Imaginária da Sociedade. E o Imaginário como figuração de imagens que é parte do presenteísmo de significados ou sentidos em Maffesoli.


Passagens

        Brassaï - Pont Neuf, Paris (1949)     “ As ruas são a morado do coletivo.” Walter Benjamin “Na praia, o homem, com os braços cru...