domingo, 9 de abril de 2017

Cabelos de Baudelaire

      Felice Casorati - Concerto - (1883-1963)




Certas cores, cabelos que esvoaçam no tempo,
mistura cheiros e sons, açafrão no tilintar do outono,
Tinta que borda a pele, marca a alma, o frio se aproxima.
Ilumina partes do corpo, o tom certo, é como a luz,
Atravessa fendas, melodias espalham, clarão que dança,
Como melodia na luz assombradas de pensamento.

Dedico meu tempo a teus cabelos, a poética imortal,
Mesmo que não crês no Nada, a cabeleira brilha,
O tempo não apaga os versos, o tempo esquece o presente.
Como o barco de Debussy, eleva a dor diante da música,
Em perdidas matemática antes do sol do meio-dia,
Fios voam mar dentro de luz, fonte da vida, os cabelos em direção à margem,
Morre no horizonte o que oculta.







sexta-feira, 7 de abril de 2017

Elegia Simultânea

Imagem: Málaga



“Uma melodia que ouvimos de olhos fechados, pensando apenas nela, está muito perto de coincidir com esse tempo que é a própria fluidez de nossa vida interior...”
Henri Bergson



Todo mês um dia, o ano que se aproxima,
Uma vida distancia-se,
flor explode o coração no ensaio que dos olhos firmes,
espanta solidão, todo mês a mesma via.
Todo ano que chega ao fim, uma dor se aproxima,
uma vida a discorrer, um poema de interlúdio,
todas as notas, todas as músicas, fim do mundo.
Todos os lugares no coração, um ser que viaja,
viver no sol da Andaluzia, frio da Serra da Estrela,
um dia entre o céu e o pensamento, ruas e destino.

Todas as edificações e o Distrito da Guarda, o alto dos morros,
Viver a luz de Lisboa, a ribeira do Porto,
aos trilhos entre Paris e o Mediterrâneo.
Todo o dia a luz a acordar, vê sonhos pintalgados a serpentear extensão do corpo.

O espreguiçar da vida, uma roda de turbante, os passos, entre trens, a nuvem leva a nado o corpo que vive entre águas. 
Toda manhã, a sombra desce a montanha,
ao lado de sua companheira, dois passos, um gole, a vida e o rio desce o pouco que pode ainda – Pensamento.
O que não tem espaço em teu heracletiano lastimoso de lágrimas e música desce correntezas.  
Dois a observar o mundo: passa o tempo, nem a morte os alcança.
Deus do inverno é o mesmo do castigo que incendeia o corpo congelado.
Estão, num outro nível de prazer, disse-me a voz misteriosa –
“Descem o rio - no corpo de um barco criado na ilusão dos mortais, eles afundam, cada dia de minha vida num espelho. A verdade vem das águas.”



quinta-feira, 6 de abril de 2017

Diferença e Descobrimento - O que é o imaginário?

   

Editora Sulina - 07 de abril está chegando o mais recente trabalho de Juremir Machado da Silva


Diferença e descobrimento
O que é o imaginário?
(a hipótese do excedente de significação)



    “O pesquisador de imaginário, intelectual, curioso, leitor de mundos em movimento perpétuo, adepto da complexidade existencial e praticante da simplicidade como forma discursiva argumentativa e poética, articulador de encontros e estimulador de prospecções, realizador de aventuras e analista de sonhos, entre a comunicação e a cultura, é o construtor de pontes, o ser à beira do rio que contempla o fluxo e tenta identificar pequenas cristalizações enquanto a noite não chega com seus encantos e armadilhas tecidas de lendas e mitos.
Um semeador de águas.
Não há pesquisa ou narrativa sobre o imaginário fora da metáfora e da analogia. A vocação do imaginário  está nas figuras de linguagem. O imaginário é uma expressão que encontrou palavras, cores ou formas. O ódio ao metafórico faz parte de um imaginário – por extensão – cientificista que ainda crê na decifração total do sentido. Essa presença da transparência no horizonte das ciências humanas remete a um desejo recorrente de legitimação por pares que figuram altivos e inalcançáveis como referências de rigor e de consagração acadêmica.” (p.101-102)


domingo, 2 de abril de 2017

O livro Invisível - sobre Ralph Ellison

          Ralph Ellison   

Luiz Maurício Azevedo

Doutor em Teoria e História Literária (UNICAMP)

 
Em um célebre artigo, intitulado The future is black (publicado no Brasil pela editora Sulina), o escritor norte-americano Mark Dery evoca uma histórica afirmação de Greg Tate, muito familiar para os indivíduos negros, segundo a qual “pessoas negras vivem a ostracização que os escritores de ficção científica imaginam.” Na tradição da literatura norte-americana não há demonstração mais nítida e expressiva desta suspeita do que a descrita por Ralph Ellison, no livro Homem Invisível. Publicado em 1952, a obra conta, em primeira pessoa, a história de um indivíduo negro tentando desesperadamente sobreviver ao racismo cotidiano. Escrito por Ralph Ellison, um escritor negro, em um tempo em que todos os escritores eram brancos, Homem Invisível é um dos livros prediletos do ex-presidente Barack Obama. E de uma extensa lista de lideranças intelectuais afro-americanas. Apesar disso, é uma obra praticamente desconhecida no Brasil. Sua primeira tradução data de 1990 (Editora Marco Zero). Depois disso, permaneceu esgotada até a publicação da segunda tradução, em 2013 (Editora José Olympio). Não ganhou resenhas nos principais suplementos literários do país. Não foi destaque nos vídeos de booktubers famosos. É, no Brasil, um livro invisível.
O brasileiro, este ser que existe para dificultar a vida dos sociólogos, faz o que pode para preservar seu delírio de democracia racial. Como tenho poderes paranormais, consigo ver, daqui onde estou, o cidadão médio: tênis, óculos escuros, camiseta da seleção Brasileira, argumentando de forma desmiolada: "Racismo não é uma preocupação nossa. Falar que tem racismo aqui é macaquice, querer copiar os americanos, sabe? Aqui é diferente. Aqui o preconceito é social, só. Pode ver, os negros são tratados como se fossem seres humanos. Por que, então, a gente ia precisar de um livro cheio de ódio, onde os negros praticam racismo inverso?"
No país das trevas, as pessoas têm dificuldade cognitiva de chamar as coisas pelo nome, e bem antes de Donald Trump já haviam inventado um mundo com fatos alternativos, pós-verdade, oxímoros e argumentos construídos sob a égide da ignorância reluzente. Sobre o racismo criaram sua própria narrativa: o melhor modo de acabar com ele é parando de falar nisso. Em suma: contra a reação das vítimas, o melhor remédio seria o silêncio dos ofendidos. É por isso que dificilmente você ouviu falar em Ralph Ellison. Esconderam de você um livro. E só escondem de você coisas que não querem que você veja. E tudo aquilo que não querem que você veja é precisamente aquilo que você necessita ver.
Quanto a mim, acredito que Ralph Ellison rompeu a fronteira cultural da literatura norte-americana de prestígio e o fez com uma obra que não representava uma ruptura estética (nada que pudesse sugerir, entretanto, o nascimento de uma nova literatura, uma literatura negra, cujo grau de exotismo poderia exercer algum componente sedutor sobre a crítica caucasiana). Acredito que Homem Invisível encaixa-se com tranquilidade na cauda longa do modernismo, tendo maiores afeições com Ulisses do que com a Cor Púrpura, para efetuar uma comparação em relevo. Embora, é claro, seja um grande construtor de cenas, Ellison não se dedica a um realismo em que os autores necessitam explorar as decepções do real para encobrir a ausência de potência criativa. Ele é mais sofisticado, e se localiza mais na linha de um Faulkner, em quem todas as suas raízes são expostas através de rituais cuidadosos, que se apresentam ironicamente como encenações cujo desejo aparente seria ocultá-las. Seu texto é fluido, mas alegórico; reto, mas sinuoso; palavroso, mas enxuto; caucasiano, mas negro.
Acredito, por fim, que um livro que permanece vivo, mesmo sessenta e cinco anos depois de ter sido publicado, é um livro que merece ser lido. Mas isso sou quem acha; eu, um sujeito que não usa camisas da seleção Brasileira, que não coloca ketchup na pizza, que não toma chimarrão, que não sente pena de Eike Batista. Você certamente achará outras coisas em Homem Invisível. Coisas suas. Coisas grandes. Você verá aquilo que eu não vi.  Você encontrará respostas que estão lá somente à sua espera, na linguagem jazzística, no ritmo alucinado, na inteligência viva da melhor obra que a literatura afro-americana já produziu. Homem Invisível vai, sob um aspecto muito específico, salvar sua vida.

Há livros assim. 


Texto pelo autor - recentemente publicado no Correio do Povo - Caderno de Sábado - 25-03-2017.

Passagens

        Brassaï - Pont Neuf, Paris (1949)     “ As ruas são a morado do coletivo.” Walter Benjamin “Na praia, o homem, com os braços cru...