“O
homem volta a si e descobre que está deitado de costas, olhando para um céu sem
nuvens, ao anoitecer.”
“...
mas pouco a pouco suas descrições passam a ter menos a ver com o mundo físico
do que com o estado de ânimo.”
Paul Auster
O mar, vastidão que impressiona. A vastidão
que dá medo. Corre. A fuga dos barcos engolfa solidões e trai os deuses. Vive
junto a eles e nem percebe. Seu castigo, o de conviver na terra com os homens.
O mar está aqui nos observando enquanto dançamos ao vento da noite fria,
estrelada, encosta suas armadilhas aos amantes que desconhecem que amanhã o
roteiro deverá continuar existindo.
Depois daquela noite não consegui tirar
mais os olhos da Baía de Morlaix. Mesmo distante, lá do velho sobrado, as
persianas não me deixam em paz. Uma luz escorre até meu rosto, meu olho de
remela apenas vê a baía que esconde sua beleza dos dias. Diria, penso em
Deleuze, da mão para o olho. O olhar que vem do mar é o que entra no sobrado,
na cozinha onde todos se divertem. O mundo é uma presença em nossas vidas.
Marie me chama: “o mar é um lobo que uiva de
tanto barulho estranho”. Ele contorna o velho sobrado com sua umidade constante,
água quase toda a extensão, sua brisa que cola na grama. Um pântano ao redor. Estamos
de volta este ano, penso. Nos aquecemos ao redor de um fogão à lenha. Tugny
prepara um chá, Amélie e Marie cuidam de uma sopa. E eu, nada por enquanto.
Arrumo a mesa e me sento ao lado do fogo. Cuido para que ninguém se canse antes
da ceia como meu olhar que observa.
Tento lembrar-me da história que o filósofo escreveu sobre Francis
Bacon, de que o artista ao pintar com os olhos se realiza quando consegue tocar
com os olhos.
Aqui ninguém reza, ainda bem, penso. Todo
mundo toca com os olhos o novo lugar. Morlaix é um presente do mar. Isso é
quase sagrado, os olhos são uma dádiva, alguém disse ao ver o tempo lá fora
uivando junto com o mar.
O momento é de todos pensarem que o mar
poderia ser uma companhia nessa primeira noite completa por inteiro. Chegamos ao
meio da madrugada. Vi o mesmo vento em outros lugares pelos
quais passamos, o cheiro, a pele do mar em meu corpo é esse sal. Enganei meus
olhos sem ter conseguido tocá-los com o novo. Tanto faz existir o inaudito. Na
manhã percebi a diferença. Como se começasse a tomar algo nos canos, algo que
fosse tomando conta do corpo. Isso seria o início e o fim da vida? Lembrei-me
de quando fiquei um mês no hospital tratando de um câncer. Aquela santa droga
para aliviar a dor, a dolantina, no corpo. Agora o mar de Morlaix entra da
mesma forma. A sensação é a mesma e eu acordei com o livro Francis Bacon: lógica da sensação de Deleuze. Através da leitura,
sinto o olho e a mão na imagem do mar. Aqui sem vê-lo, porque estamos sós, o
seu cheiro impregna os sentidos. Imagino o mar, como o diagrama em Deleuze, que
fracassa se nada surgir. Aqui o fato pictural do mar vem pela pele. Uma injeção
de leitura, a pele e o mar estarão lá para sempre. Essa é a viagem. Vejo que
Marie abandonou a leitura sugerida por mim. Ela sempre diz que já existem loucos
na vida suficientes e prefere uma aventura policial à reflexão dos livros.
Tugny, bem sei, ele tem seu emaranhado estético. Ainda bem. Imagina se todos
nós soubéssemos o que se passa por dentro um do outro. O mar daria esse mesmo
efeito de desnudar o outro? Não. Ele tem seus segredos, a força imagética de
aterrorizar e de maravilhar o continente, os homens. Temos nossos segredos. A
diferença se une ao diálogo.
(Fragmento da novela Baía de Corbiere)