sábado, 30 de dezembro de 2017

Olhos de Alfama



Minha alma, minha fama, roupas minha Alfama jogadas ao Tejo. Amarrotadas de solidão, ruas e sol, sobre as pedras o caminho entre cores, a chuva absorve o olhar. O seco da boca, a dor dos pés, a trilha que leva do lado de lá da ponte. A ladeira dos sonhadores, o comboio leva a dor das paixões, o fado a cantar, música ao léu, um corredor de flores, dor que molha e seca na Alfama. Três nomes no pensamento:  Partir, Voltar, Nadar.  Um longe, um perto, o sonho que dorme e acordes da viola nos passos que some no alto da cidade. Todos os olhares ao rio, um dia morei em ti. O que une e separa é o oceano que penetra no Tejo até a dor dissipar o medo do passado.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Tabuleiro de cores

                                          Salvador Dalí




O preto no branco, o branco no teto, o trato mal das ideias,
O branco e preto, o feto, o acerto de contas, o branco dita – regras – dura e purifica linguagem, limpa o chão por onde pisa.
O preto e o branco nos afetos, acerto histórico, a morte é o fim. Todas as cores no céu, sem luta não existe arco-íris.
O branco é a ordem, a bandeira é da liberdade, a história é preta e branca, todas as cores, todos os olhos, linguagem é o que faz da vida o tabuleiro da imaginação.
Amor à vida, olhos desnudos, corpo por cima, todas as cores feminino-masculino, o viés une os dois. Formas de expressar, diversidade de ver, recusar, deixar o céu da boca, saliva da LIBERDADE.



                       Foto: Fátima Marchi – Tabuleiro de Reis


terça-feira, 7 de novembro de 2017

A Fala Cotidiana contra a Verdade





“O mundo inteiro nos é oferecido, mas por meio do olhar.”
Maurice Blanchot

Por aqui, no país de orientação religiosa pós-liberal, na capital, Porto Alegre, um movimento pela moralidade parece estar além dos deuses; no lugar das decisões mitológicas prevalece a orientação de ordem político-social-moralista. O que deseja implantar como normal e, quiçá, lei, no futuro,vedar olhos em nome de um pretenso desejo de punição aos que pensam contrário. Fadiga dos tempos, o moralismo toma conta do corpo que pensa sem a razão e leva à força toda a diferença na guilhotina do espetacular. Em tempo de democracia o que cair na rede é válido, até as frustrações de um espírito conservador, que, em forma de ironia, sacraliza o cotidiano. Para eles, os moralistas, a arte deve ser controlada por guardiães do bom costume, como se o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, além de pastor, tomasse o controle dos corações e dissesse o que é o lado bom e o lado mau das cabeças.
Na cultura Ocidental o tema é recorrente, desde que a mitologia foi tomada de assalto pelo racional, isso lá distante, na Grécia da epopeia, no lugar em que existia o mito que se fundiu com o racional, o pensamento se formou. Um mundo vive de idas e vindas, mas não permitir que o mito tome conta do “sagrado” invenção para dominar o racional em relação ao medo do mito, o homem se formou. A educação, no entendimento dos que pensam que tanto faz existir o histórico, o lado mais obscuro do homem está na sua cabeça. Foi criado o bem para eliminar o outro lado. As religiões monoteístas controlam tudo, menos a tara do conservador, nem a gula dos ditadores. Aqui, o ditador moral, o que move o mundo sendo movido por sua tentativa de cura ao se salvar da morte. Momentâneo. O homem é um passo do desconhecido. Sou do lado anárquico da humanidade. A cultura no seu confinamento moralista empobrece o crivo do pensar. Nem mesmo se tem mais diálogo quando, hoje, na contemporaneidade, se lavam as mãos em nome da purificação do espírito, impondo um lado que, para mim, o grotesco é parte desse lado, então, uniformizar as mentes é uma forma de controle do olhar, uma forma de vigiar na paz democrática, no medo do desconhecido. Ao falar um pouco das origens, a partir da leitura e do ver cinematográfico, do olhar perdido no horizonte, sinto-me distante cada vez mais do cinismo democrático e religioso deste século.

Não sinto saudades do que vivi, a corrente da vida é parte do cotidiano que escapa das mãos do guardião social. Tem uma saída, o possível está na insignificância da linguagem, burlar os olhos, desvelar os véus, mostrar a dor da realidade que já cansou da simples nudez, mostrar o que tem por dentro, pois todo significado pode forjar novas linguagens e embaralhar os códigos do guardião. 

                       Egon Schiele - Two Women Embracing

domingo, 22 de outubro de 2017

Amplidão Mínima

                      Fonte: Zacharias Martin Aagaard





[...] seu crescimento é doloroso como o de um menino e triste como o começo da primavera.” Rainer Maria Rilke


Eu não minto, não meto,
Descubro linhas, acerto, perco o tempo,
Encontro os pontos, absurdo na meta,
Desconto a vida em linha reta.
Sinuosidade da morte:
Acho o lúdico, súbito, mordo língua,
Nado a esmo, lá no fim águas,
Olhos vivos nas algas da solidão,
Enfio mãos, naufrago em Mar de Espanha.[1]
Afundo sonhos, renovo ideias, conto histórias,
Faço o cerco, prolongo a narrativa, escapo da morte, 
Invento mundos, amplio a visão, mato tempo em vão,
Encontro espaços entre o Nada e o tempo de viver.
Histórias forjadas, atos do pensamento, nada perdido,
Livros lidos nunca escritos, sonho noutros lugares,
Vivo distante do meu lugar, destino no acaso faz-me errante.
Nunca saio do meu canto antes de olhar a fadiga das paredes.
O ser não envelhece no tempo, é mais velho que a morte dos pensamentos.  




[1] Alusão ao município sem mar, Mar de Espanha – Minas Gerais

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Sem discípulos



“Objeto é apenas o que pode ser ocupado e abandonado.”
Peter Sloterdijk (Esfera I – Bolhas)

Nenhum homem, nenhum momento, nem a flor do pensamento, meio olho e uma frota de navios imaginários a se perder na linha do tempo. De nunca mais poder retornar à terra segura, mesmo sendo o que ilumina as ideias, anda, por ora, a procurar o fantasma do passado, uma obsessão do demônio da igualdade nos poros biológicos predestinados a sobreviver ao sol. O novo tempo é a estranha forma de matar e limpar as ruas em nome de uma integridade tenebrosa. A moralidade se impõe como ordem dos néscios de alma que evocam a religião, a ciência e até a arte de matar o próximo.
O homem deste século sabe tudo, até mesmo crê que é inferior a deus para matar em nome de um deus. Prefiro ver o rio caudaloso de ideias se perder em ruas, túneis profundos, em pedras que escondem os desconhecidos a morrer na ordem do exército de mosquitos que sugam o sangue da maioria que pondera. Na fuga, atravessar oceanos, cruzar fronteiras sem olhar para trás com medo de sua própria cola que pega fogo feito fuga de animais racionais que escolheram se mesclar com a resignação das teorias fatalistas.
Um espetáculo público se monta lá do alto do poder celestial, todo homem que tem altivez e acredita no destino crê se salvar. Por outro lado, o que faz da fuga eterna seu imaginário, a poética e o país é quem talvez encontre o verdadeiro medo e força de forjar um novo tempo de flanar. Diria um quase andar em nuvens e um deslizar em águas profundas até chegar à margem e ver que na fuga todos são iguais e que, de uma hora para outra, retornam os dogmas em roupas e véus.




domingo, 10 de setembro de 2017

Dançar e Punir

       William Blake Oberon, Titania and Puck with Fairies Dancing



“E assim, à medida que o sol se punha, uma visão foi se impondo aos meus olhos.”
Antonin Artaud

Nas redes sociais as pessoas que gostam de legitimar a cultura do óbvio, da constatação, da quantidade, essas, emburreceram de vez. Jogam suas frustrações na falta de tempo para compreender a vida, naquilo que ela possa nos apresentar de novo, de desconhecido. A vida é o tempo de todas as coisas, o mais simples é o extremo, destruidor ou construtivo: arrasar ou adorar. É mais fácil primeiro adorar, depois, em outro sentido, destruir o pensamento contrário; sem se dar conta, pode-se estar cavando o próprio erro: o fim é o limite para o pensamento duro. O que vem a ser o pensamento duro, bruto? É o pensar dentro da construção cultural dual, em que existem os polos do bem e do mal. Essa religiosidade racional é parte da vida, é claro, não serei eu a refutar todas as manifestações pelo simples fato de pensar diferente. Eis a reflexão dos frágeis, pensar, refletir, o contraponto do monismo deste tempo irredutivelmente evaporizado no digital DNA das fraquezas brutais dos homens; está faltando Alteridade.



sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Desfabricar




“[...] mas só porque tínhamos de nos cingir aos fatos não queria dizer que devíamos deixar de pensar ou não era permitido usarmos a nossa imaginação...”
Paul Auster – 4 3 2 1

A verdade é que quando escrevemos, digo, escrevo no impulso. A razão nunca abandonou-me, exceto no momento em que tenha perdido totalmente a fé na lei sonhada pelos homens, regida por uma onipotência, vontade acima dos homens, exceto, diante da razão traiçoeira. A razão ou fé, pensei: a luz no fim do túnel, é a única que me engana [...] Andei pensando em fazer uma saída do Rio Grande do sul, ou seja, esquecer por lapso de tempo não compreendido, levar a bandeira da vitória ou da derrota, pior, achar que se é na identidade que a alma deva ser reconfortada...Me perco, estou à deriva. Os braços avançam pretensamente à margem do nunca encontrado outro lado da paz. Um rio tem sua extensão de medo e finitude. A existência requer mais do que braços longos e ágeis, precisa ter técnica, unidade e fragmento a cortar o frio, a perfurar o peso volumoso das águas.   
Não interessa a louca, a boca, a secura do tempo, do corpo, do lânguido ao úmido, do torpe ao racional, do tiro no escuro à clareza das ideias. Sempre haverá um meio termo do absoluto, uma tentativa de completude sem que se feche para a escritura. Melhor seria não ter que prestar atenção aos determinantes. O acaso é uma quebra de registro, um protocolo que deixa de impor verdades. Existe razão nos descontínuos pensamentos. Há de existir bons sentimentos diante de tanta desesperança, penso enquanto tomo meu último gole de água e perco-me nas águas de um rio sem fim.

                                    Menina Janela-por the Real Richard


segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Trem das Águas



“Olha em redor: a poucos passos dele formou-se uma pequena multidão que está observando seus movimentos como as convulsões de um demente.”
(Palomar contempla o céu – Italo Calvino)


Nadar e ser um trem ao mesmo tempo, deslizar nas águas, cruzar o país como se fosse uma locomotiva, de braçada em braçada, deslizar águas, trilhos e o coração bater tão rápido enquanto o vento singra as águas do tempo, da vida. O Tempo para se viver mais do que tem para continuar a subir em trens do mundo, de poder nadar sem saber o tempo de parar, sem ter estação para descer, o tempo de morrer é não poder mais ter o som das águas, o sibilo da locomotiva humana, do sinal no céu da luz que brilha, da estrela que ilumina a dor dos olhos que envelhecem de tanto ver o fim que não termina e os braços a continuar, avançar o corpo para o outro lado do mundo, de fugir da miséria dos homens, de buscar o som inaudito dos trilhos, do apito de um trem, do barulho do mar, do rio que silencia enquanto se atravessa a fronteira a nado para contrabandear o vento do outro país, para viver o tempo dos outros e buscar dentro de si o som das águas que vibram nos trilhos úmidos da chuva. 

domingo, 13 de agosto de 2017

Mundo

                              Hebert Maeder, 1952.

“A compreensão significa o projetar-se em cada possibilidade de ser-no-mundo [...] existir como essa possibilidade.”
Martin Heidegger

O mundo é velho, vejo a foto, vejo a vida,
O mundo não passa da minha memória, ele se perde.
O mundo é uma árvore que virou pedra, o mundo é mais velho que minha dor.
O mundo circula a Terra, a velhice é o mundo, meu capuz é velho, tão velho que minha amada foi embora para outro mundo.
O mundo é o tempo que levo até meu trabalho, o lugar que invento mundos, que envelheço com minha dor e procuro fugir deste mundo naufragado, meu país é novo. Sou velho demais para o meu País.
Pudesse eu, se quisesse, te daria um mundo, o melhor dos mundos.
Não posso comprar nada, nem tudo nem nada, te devolvo os sonhos.
Vou dar a volta ao mundo, circular é a fonte de vida, quando menos se espera tem uma nascente.



Domingo

                                                    Nikolai CHERNYSHEV.On the Way. 1939.



"Just a perfect day
drink sangria in the park
And then later when it gets dark
we go home"
Lou Reed

Todos os dias da semana perfazem os dias todos de uma vida, toda vida é o resultado de um só dia que estende-se ao tempo. O dia em minha cabeça, começou num domingo. Tão logo concebi a importância dos dias foi porque o domingo estava presente na vida, no início toda a expectativa de vida, uma semana dos meus dias que se completava, depois, era o começo para outro sonho e o pior, a realidade iniciava sempre aos domingos. Dia especial espalhados por diversos lugares da Terra, em religiões, em orgias gastronômicas, bebedeiras entre amigos, almoços, corridas pelos parques, em competições entre barcos e na lentidão dos domingos a vida foi tomando seu rumo. No domingo a família está reunida, o pai é o domingo e até o fim do dia os domingos são dos pais: mãe e pai, o alento para o resto da semana.


sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Sentido


Anda trépido, tripula um Uber, navega o tempo,
O único espaço que existe é a pele que circula o olho,
Um desenho perfeito, escalpe de retina, morte que salva,
A linguagem distorcida, nem roupa nem signo,
A ambiguidade é nossa PAZ. Quem rouba o sonho
é o cérebro.

A voz pode oscilar, o signo vinga a vida. 

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Cores do Tempo

     Minh Ngo Thanh Vietnam

“Um borrão. Um claro. Claro obscuro. Ora um. Ora outro.” Samuel Beckett


De todas as cores, de todos os sons, nem espaço existe para se deixar de pensar. Todos os números dão a exatidão, exatamente no plano abstrato onde o real aparece na representação. A única certeza está no código: a precisão infinitesimal percorre o tempo sem trégua para o olho do observador. Aí pensei, e se eu pudesse discorrer até o fim do mundo? Pensei que o tempo pudesse dar uma trégua aos corações libertários, que os deixassem parar um pouco no instante infinito do prazer, que a realidade pudesse ser a mesma da eternidade da metamorfose [...] Viral, correr dos sons possa se transformar em signos do escape total do Real. A maneira de percorrer o outro lado da vida é não deixar de viver, eu sei. Armei mais um truque para me manter aceso ao próximo século como uma lanterna à deriva no mar. Se tornar-me imortal − juro, darei um jeito nisso, voltarei a comer glúten. Promessa de leitor!!!

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Língua Absolvida

             Hans Dieter (German, 1881 -1968)





“Foram o pão e o sal de meus primeiros anos. São eles a verdadeira e secreta vida de meu intelecto.”
Elias Canetti (do livro A língua absolvida)

Na língua, a ginga, a sonora, a fala solta,
O verbo desprezado, o vento a zumbir.
O verbo engolidor, a voz que te falta,
O tempo é testemunho da imperfeição.

Na altitude o desejo superior, a brancura é farsa,
O sujeito entra numa espécie de devir étnico,
Desconhece o resto do corpo, o domínio é forte.
A morte o desfaz em segundos, não perde a pose dos dentes brancos.

Falta movimento na política, o corpo é preso.
Saída escusa povoa a cartografia de um país,
Podridão é mero passaporte para o inferno.
Dissolvida, a língua muda de lugar, a interioridade,
Espaço mediatizado entre a fuga e o morrer na alvura.

sábado, 27 de maio de 2017

Inocência

                 Gustav Klimt - Three Ages of Woman - Mother and Child 



“Mas quanto mais me tornava transparente e leve, mais meus despojos cinzentos ganhavam consistência para seus sentidos fatigados.”
Pierre Klossowski



Imagino meu corpo além do meu corpo. Além, um pouco mais distante do que hoje sou. Bem antes, quando bem pequenino ao lado de minha mamãe. Bem ao lado, sentadinho em um banquinho, enquanto ela cuidava de minha avó enferma. Estava ali, ainda sem a consciência real das coisas, nada a perder, e o lado humano de estar à deriva da lógica da vida. A vida dos homens não existia. A inocência e a vida, brincava com o Nada: suprema maneira de ser apreendida pelo pequeno Ser. Uma alegoria do impossível, desde que, hoje, já não sei o que estava a viver. Construí esse mundo, através do imaginário de minha mãe, pude ir além do que hoje posso compreender.  
Falava sozinho, como um humano que ainda está a ver o mundo, o poente é mais distante hoje. Minha mãe cuidava de sua mãe, olhava-me com lágrimas de dor e felicidade.

Essa é uma imagem que não lembro por mim mesmo, é a recordação de relato que minha mãe volta sempre a me contar. Já narrou inúmeras vezes, não importa, estou sempre pronto para ouvi-la novamente. Todos os ângulos, a vida é sempre a mesma, o amor está dentro e fora dessa narrativa. O amor é infinito, a dor morre logo ali [...] outras narrativas.

“Dalgum modo outra vez e todos outra vez no olhar fixo. Todos duma vez como uma vez.” Samuel Beckett

sábado, 20 de maio de 2017

Técnica dos cupins e o blogueiro




“Dois mil e quinhentos anos depois da tecedura de Platão, parece que agora não só os deuses, mas também os sábios se retiraram, deixando-nos sozinhos com nossa ignorância e nosso parco conhecimento das coisas.”
Peter Sloterdijk

        Definitivamente o determinismo decretou que os blogs estão em crise, que as pessoas migram mais rápido que cupins de uma madeira a outra, que passam num movimento rápido à noite e que de durante o dia já se percebe que ali viveu um blog. Ninguém naquele espaço habitará mais, a não ser o vazio de caracteres deixados consiga ser a metafísica constante das linguagens trôpegas de uma modernidade cínica.
Assim penso, será que foram os blogs que migraram à noite para outro espaço em caracteres em uma necessidade causal, que no lugar onde existia uma linguagem restou uma pasta oculta e que um dia alguém ainda irá lembrar? Ou mesmo, posso pensar, que de onde havia a linguagem nunca existiu destino e significados em sua textura, que tudo é fruto dos que pensam em guardar apenas na memória. Nem memória existe mais agora, a não ser que fique impresso e guardado em uma gaveta imaginária onde cupins não possam abocanhar. Nem a nuvem consegue suportar a memória, ela exige demais, é altamente corrosiva, poderia muito bem acabar com o esquecimento, desmitificar previsões e mudar o rumo do que era um determinante e se tornar em fractais.
O fim é o espelho da repetição diferenciada, não existe propriedade do que se espelha se não tivermos a velha crença de que a ideia combinada com a lógica dos acontecimentos só permanece se puder continuar corroendo as madeiras.
As nuvens que alimentam e guardam memórias são raras hoje em dia. Nem um pouco de sentimentalismo, mas uma porção de devaneio nos permite esquecer o acontecimento, depois é crer que o agora é diferente do antes. Como diz o designer, “o que parece simples para mim, talvez seja complexo para outra pessoa” (Vitor Lourenço), mas o que é complexo nunca deixará sua complexidade pelo simples fato que o finalismo contemporâneo está mais para uma migração do que para uma etapa avançada do pensamento.     
O grau de complexidade é a luz de linguagens jogadas no tempo e para que alguém pessoa possa tê-la é não necessariamente poder tornar simples o seu grau de uso. E, hoje, definitivamente a imagem é apenas o cenário em movimento às linguagens que correm tempo das certezas. Para os fins dos determinantes e para novas crenças existirem serão imprescindíveis sujeitos privilegiados ou não. Estar rompendo e descobrindo a melhor maneira de desmitificar o destino é tarefa do pensamento.

(texto ampliado de 2011) 

domingo, 9 de abril de 2017

Cabelos de Baudelaire

      Felice Casorati - Concerto - (1883-1963)




Certas cores, cabelos que esvoaçam no tempo,
mistura cheiros e sons, açafrão no tilintar do outono,
Tinta que borda a pele, marca a alma, o frio se aproxima.
Ilumina partes do corpo, o tom certo, é como a luz,
Atravessa fendas, melodias espalham, clarão que dança,
Como melodia na luz assombradas de pensamento.

Dedico meu tempo a teus cabelos, a poética imortal,
Mesmo que não crês no Nada, a cabeleira brilha,
O tempo não apaga os versos, o tempo esquece o presente.
Como o barco de Debussy, eleva a dor diante da música,
Em perdidas matemática antes do sol do meio-dia,
Fios voam mar dentro de luz, fonte da vida, os cabelos em direção à margem,
Morre no horizonte o que oculta.







sexta-feira, 7 de abril de 2017

Elegia Simultânea

Imagem: Málaga



“Uma melodia que ouvimos de olhos fechados, pensando apenas nela, está muito perto de coincidir com esse tempo que é a própria fluidez de nossa vida interior...”
Henri Bergson



Todo mês um dia, o ano que se aproxima,
Uma vida distancia-se,
flor explode o coração no ensaio que dos olhos firmes,
espanta solidão, todo mês a mesma via.
Todo ano que chega ao fim, uma dor se aproxima,
uma vida a discorrer, um poema de interlúdio,
todas as notas, todas as músicas, fim do mundo.
Todos os lugares no coração, um ser que viaja,
viver no sol da Andaluzia, frio da Serra da Estrela,
um dia entre o céu e o pensamento, ruas e destino.

Todas as edificações e o Distrito da Guarda, o alto dos morros,
Viver a luz de Lisboa, a ribeira do Porto,
aos trilhos entre Paris e o Mediterrâneo.
Todo o dia a luz a acordar, vê sonhos pintalgados a serpentear extensão do corpo.

O espreguiçar da vida, uma roda de turbante, os passos, entre trens, a nuvem leva a nado o corpo que vive entre águas. 
Toda manhã, a sombra desce a montanha,
ao lado de sua companheira, dois passos, um gole, a vida e o rio desce o pouco que pode ainda – Pensamento.
O que não tem espaço em teu heracletiano lastimoso de lágrimas e música desce correntezas.  
Dois a observar o mundo: passa o tempo, nem a morte os alcança.
Deus do inverno é o mesmo do castigo que incendeia o corpo congelado.
Estão, num outro nível de prazer, disse-me a voz misteriosa –
“Descem o rio - no corpo de um barco criado na ilusão dos mortais, eles afundam, cada dia de minha vida num espelho. A verdade vem das águas.”



quinta-feira, 6 de abril de 2017

Diferença e Descobrimento - O que é o imaginário?

   

Editora Sulina - 07 de abril está chegando o mais recente trabalho de Juremir Machado da Silva


Diferença e descobrimento
O que é o imaginário?
(a hipótese do excedente de significação)



    “O pesquisador de imaginário, intelectual, curioso, leitor de mundos em movimento perpétuo, adepto da complexidade existencial e praticante da simplicidade como forma discursiva argumentativa e poética, articulador de encontros e estimulador de prospecções, realizador de aventuras e analista de sonhos, entre a comunicação e a cultura, é o construtor de pontes, o ser à beira do rio que contempla o fluxo e tenta identificar pequenas cristalizações enquanto a noite não chega com seus encantos e armadilhas tecidas de lendas e mitos.
Um semeador de águas.
Não há pesquisa ou narrativa sobre o imaginário fora da metáfora e da analogia. A vocação do imaginário  está nas figuras de linguagem. O imaginário é uma expressão que encontrou palavras, cores ou formas. O ódio ao metafórico faz parte de um imaginário – por extensão – cientificista que ainda crê na decifração total do sentido. Essa presença da transparência no horizonte das ciências humanas remete a um desejo recorrente de legitimação por pares que figuram altivos e inalcançáveis como referências de rigor e de consagração acadêmica.” (p.101-102)


domingo, 2 de abril de 2017

O livro Invisível - sobre Ralph Ellison

          Ralph Ellison   

Luiz Maurício Azevedo

Doutor em Teoria e História Literária (UNICAMP)

 
Em um célebre artigo, intitulado The future is black (publicado no Brasil pela editora Sulina), o escritor norte-americano Mark Dery evoca uma histórica afirmação de Greg Tate, muito familiar para os indivíduos negros, segundo a qual “pessoas negras vivem a ostracização que os escritores de ficção científica imaginam.” Na tradição da literatura norte-americana não há demonstração mais nítida e expressiva desta suspeita do que a descrita por Ralph Ellison, no livro Homem Invisível. Publicado em 1952, a obra conta, em primeira pessoa, a história de um indivíduo negro tentando desesperadamente sobreviver ao racismo cotidiano. Escrito por Ralph Ellison, um escritor negro, em um tempo em que todos os escritores eram brancos, Homem Invisível é um dos livros prediletos do ex-presidente Barack Obama. E de uma extensa lista de lideranças intelectuais afro-americanas. Apesar disso, é uma obra praticamente desconhecida no Brasil. Sua primeira tradução data de 1990 (Editora Marco Zero). Depois disso, permaneceu esgotada até a publicação da segunda tradução, em 2013 (Editora José Olympio). Não ganhou resenhas nos principais suplementos literários do país. Não foi destaque nos vídeos de booktubers famosos. É, no Brasil, um livro invisível.
O brasileiro, este ser que existe para dificultar a vida dos sociólogos, faz o que pode para preservar seu delírio de democracia racial. Como tenho poderes paranormais, consigo ver, daqui onde estou, o cidadão médio: tênis, óculos escuros, camiseta da seleção Brasileira, argumentando de forma desmiolada: "Racismo não é uma preocupação nossa. Falar que tem racismo aqui é macaquice, querer copiar os americanos, sabe? Aqui é diferente. Aqui o preconceito é social, só. Pode ver, os negros são tratados como se fossem seres humanos. Por que, então, a gente ia precisar de um livro cheio de ódio, onde os negros praticam racismo inverso?"
No país das trevas, as pessoas têm dificuldade cognitiva de chamar as coisas pelo nome, e bem antes de Donald Trump já haviam inventado um mundo com fatos alternativos, pós-verdade, oxímoros e argumentos construídos sob a égide da ignorância reluzente. Sobre o racismo criaram sua própria narrativa: o melhor modo de acabar com ele é parando de falar nisso. Em suma: contra a reação das vítimas, o melhor remédio seria o silêncio dos ofendidos. É por isso que dificilmente você ouviu falar em Ralph Ellison. Esconderam de você um livro. E só escondem de você coisas que não querem que você veja. E tudo aquilo que não querem que você veja é precisamente aquilo que você necessita ver.
Quanto a mim, acredito que Ralph Ellison rompeu a fronteira cultural da literatura norte-americana de prestígio e o fez com uma obra que não representava uma ruptura estética (nada que pudesse sugerir, entretanto, o nascimento de uma nova literatura, uma literatura negra, cujo grau de exotismo poderia exercer algum componente sedutor sobre a crítica caucasiana). Acredito que Homem Invisível encaixa-se com tranquilidade na cauda longa do modernismo, tendo maiores afeições com Ulisses do que com a Cor Púrpura, para efetuar uma comparação em relevo. Embora, é claro, seja um grande construtor de cenas, Ellison não se dedica a um realismo em que os autores necessitam explorar as decepções do real para encobrir a ausência de potência criativa. Ele é mais sofisticado, e se localiza mais na linha de um Faulkner, em quem todas as suas raízes são expostas através de rituais cuidadosos, que se apresentam ironicamente como encenações cujo desejo aparente seria ocultá-las. Seu texto é fluido, mas alegórico; reto, mas sinuoso; palavroso, mas enxuto; caucasiano, mas negro.
Acredito, por fim, que um livro que permanece vivo, mesmo sessenta e cinco anos depois de ter sido publicado, é um livro que merece ser lido. Mas isso sou quem acha; eu, um sujeito que não usa camisas da seleção Brasileira, que não coloca ketchup na pizza, que não toma chimarrão, que não sente pena de Eike Batista. Você certamente achará outras coisas em Homem Invisível. Coisas suas. Coisas grandes. Você verá aquilo que eu não vi.  Você encontrará respostas que estão lá somente à sua espera, na linguagem jazzística, no ritmo alucinado, na inteligência viva da melhor obra que a literatura afro-americana já produziu. Homem Invisível vai, sob um aspecto muito específico, salvar sua vida.

Há livros assim. 


Texto pelo autor - recentemente publicado no Correio do Povo - Caderno de Sábado - 25-03-2017.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Mar

 
“O homem volta a si e descobre que está deitado de costas, olhando para um céu sem nuvens, ao anoitecer.”
“... mas pouco a pouco suas descrições passam a ter menos a ver com o mundo físico do que com o estado de ânimo.”

Paul Auster

O mar, vastidão que impressiona. A vastidão que dá medo. Corre. A fuga dos barcos engolfa solidões e trai os deuses. Vive junto a eles e nem percebe. Seu castigo, o de conviver na terra com os homens. O mar está aqui nos observando enquanto dançamos ao vento da noite fria, estrelada, encosta suas armadilhas aos amantes que desconhecem que amanhã o roteiro deverá continuar existindo.
Depois daquela noite não consegui tirar mais os olhos da Baía de Morlaix. Mesmo distante, lá do velho sobrado, as persianas não me deixam em paz. Uma luz escorre até meu rosto, meu olho de remela apenas vê a baía que esconde sua beleza dos dias. Diria, penso em Deleuze, da mão para o olho. O olhar que vem do mar é o que entra no sobrado, na cozinha onde todos se divertem. O mundo é uma presença em nossas vidas.
Marie me chama: “o mar é um lobo que uiva de tanto barulho estranho”. Ele contorna o velho sobrado com sua umidade constante, água quase toda a extensão, sua brisa que cola na grama. Um pântano ao redor. Estamos de volta este ano, penso. Nos aquecemos ao redor de um fogão à lenha. Tugny prepara um chá, Amélie e Marie cuidam de uma sopa. E eu, nada por enquanto. Arrumo a mesa e me sento ao lado do fogo. Cuido para que ninguém se canse antes da ceia como meu olhar que observa.  Tento lembrar-me da história que o filósofo escreveu sobre Francis Bacon, de que o artista ao pintar com os olhos se realiza quando consegue tocar com os olhos.
Aqui ninguém reza, ainda bem, penso. Todo mundo toca com os olhos o novo lugar. Morlaix é um presente do mar. Isso é quase sagrado, os olhos são uma dádiva, alguém disse ao ver o tempo lá fora uivando junto com o mar.

O momento é de todos pensarem que o mar poderia ser uma companhia nessa primeira noite completa por inteiro. Chegamos ao meio da madrugada. Vi o mesmo vento em outros lugares pelos quais passamos, o cheiro, a pele do mar em meu corpo é esse sal. Enganei meus olhos sem ter conseguido tocá-los com o novo. Tanto faz existir o inaudito. Na manhã percebi a diferença. Como se começasse a tomar algo nos canos, algo que fosse tomando conta do corpo. Isso seria o início e o fim da vida? Lembrei-me de quando fiquei um mês no hospital tratando de um câncer. Aquela santa droga para aliviar a dor, a dolantina, no corpo. Agora o mar de Morlaix entra da mesma forma. A sensação é a mesma e eu acordei com o livro Francis Bacon: lógica da sensação de Deleuze. Através da leitura, sinto o olho e a mão na imagem do mar. Aqui sem vê-lo, porque estamos sós, o seu cheiro impregna os sentidos. Imagino o mar, como o diagrama em Deleuze, que fracassa se nada surgir. Aqui o fato pictural do mar vem pela pele. Uma injeção de leitura, a pele e o mar estarão lá para sempre. Essa é a viagem. Vejo que Marie abandonou a leitura sugerida por mim. Ela sempre diz que já existem loucos na vida suficientes e prefere uma aventura policial à reflexão dos livros. Tugny, bem sei, ele tem seu emaranhado estético. Ainda bem. Imagina se todos nós soubéssemos o que se passa por dentro um do outro. O mar daria esse mesmo efeito de desnudar o outro? Não. Ele tem seus segredos, a força imagética de aterrorizar e de maravilhar o continente, os homens. Temos nossos segredos. A diferença se une ao diálogo.
(Fragmento da novela Baía de Corbiere)  

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Silêncio da letra

           Wu Guanzhong (1919-2010)


Cansei dos teus olhos,
de tua voz, a duração deste momento,
o movimento faz o tempo durar o sempre na imagem.
O breviário do solitário é catar os dias, então, do previsível, da atitude dos versos, a métrica é o fluxo do pensamento:
e o silêncio fascina.
Morrerei em Paris como César Vallejo e Celan.
O Sena que lava a textura do tecido,
palavras entre as pernas abrem-se às manhãs da cidade.
A poesia nasce da algaravia, da alma perdida, morrer em águas turvas.
O silêncio abre-se coberto de tardes tristes,
um beijo na beleza incessante dos olhos esquecidos dos
os amantes  que não se cansam de partir.
O silêncio fascina sobre o escrito.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Leitor anarquista da Filosofia Cristã

        Robert Doisneau 



“Quer dizer, no momento em que adentramos o espaço da memória, entramos no mundo.”*
Paul Auster

Gosto de ler os filósofos cristãos, principalmente os dos séculos XIX e alguns do XX. Assim, ao lê-los aprendo mais do que muita ironia vã da ignorância religiosa e fanática sobre Deus. Sou de fato um ser em movimento, mas o que nunca deixou-me impressionar é a latência reflexiva dos moralistas ao tratar da vida como se ela tivesse uma base sólida para todas os questionamentos. Escamotear a existência em nome de um ser superior. De fato, a vida é onde tudo se inicia e tudo se perde no fim. O acontecimento tem seu apogeu. Os observadores mais atentos, os desavisados e dispersos, porém atentos, a todos que param um pouco para apenas sentir e deixar o tempo passar ou ficar parado no ato de pensar. Éttienne Gilson escreveu:
O pânico que parece se apoderar dos apologistas sempre preocupados em não perder o último navio, é algo que lhes é natural, mas não deixa de ser inútil. Não há último navio. Da popa daquele no qual você embarcar, você verá outros três ou quatro se preparando para partir.**

Ou seja, prefiro a reflexão inteligente do que ardor de uma crença, de uma outra ordem de religião. Isso se aprende ao longo dos tempos. Quantos Tempos existe quando vive em uma só vida? Depende, não da crença, a meu ver, da capacidade que se tem de encarar a realidade sem temer que a ordem das coisas não gerida pelo fervor de uma crença, mas por circunstâncias que envolvem essa vida.

No caso dos exegetas, daqueles que dedicam sua vida a interpretar, a eles meu profundo respeito, mas nem com todos me sentaria para conversar, ouvi-los. Porque se tem algo que me deixa numa profunda dislexia é o tom professoral, é querer dar aula no mais alto grau da tonalidade e expressão teatral de um professor. Isso me tira do sério, então, prefiro conversar com os livros. O Éttinne Gilson é meu companheiro por excelência. Com ele aprendi a ler melhor textos filosóficos, a ouvir e, principalmente, recusar verdades e tons pseudoeducadores de alguns seres monocórdios. No final da última página de um Gilson, acredito cada vez menos na luz duradoura de uma Verdade única.

* A Invenção da Solidão. Paul Auster. Companhia das Letras, 1999.
** O Filósofo e a Teologia. Éttinne Gilson. Paulus, 2012.

Passagens

        Brassaï - Pont Neuf, Paris (1949)     “ As ruas são a morado do coletivo.” Walter Benjamin “Na praia, o homem, com os braços cru...