“Todo
esforço é um crime porque todo o gesto é um sonho morto.”
Fernando
Pessoa
Um sujeito estranho entra na porta do bar,
por onde o sol minutos atrás já tinha adentrado sem pedir licença, o cara veio
sentou à mesa ao lado da minha. O estranho em todos os aspectos, de terno
novinho em folha, com um belo sapato, foi o que mais me impressionou naquele lugar
distante em que eu me encontrava, no interior, uma praia do Rio Grande do
Norte, o sujeito me olhou, enquanto eu tomava uma dose de uísque sem gelo, desolado
naquele fim de mundo. Olho no olho, ele me diz de soslaio numa língua quase
parecida com o português ‒ “vou sentar ao seu lado, tenho algo a lhe dizer,
senhor”, antes mesmo de qualquer reação, como um leopardo o sujeito já estava
ao meu lado mexendo na mochila que trazia consigo. Foi logo expressando sua
lógica “A vida é mais do que se imagina. Concorda? O pensamento é uma arma
perigosa, o crer é a absolvição da alma.”
Ele retira da mochila uma pistola e um
silenciador e nesse mesmo instante já acopla no cano, o tempo suficiente para
eu poder reagir, mas não, fiquei imobilizado, ele continuou, “O último gole
seu, a vida já era, ou você segura essa pistola e dispara um tiro em minha
cabeça ou eu acabarei com a sua a vida antes mesmo de você acabar esse uísque.”
Não tinha o que dizer, o cara coloca a pistola em minha mão esquerda. Ele disse
de uma forma confusa ou eu que já não conseguia entender mais nada, pensei. Eu
era o escolhido, que tinha premeditado tudo, disse que observou meus passos
desde a minha chegada naquela praia, que estava no mesmo hotel, que o escolhido
tinha sido eu. Agora ouvia a conotação mais audível da vida, as palavras em
toda sua extensão, compreensivas, um cara me dizendo tudo aquilo, um derramar
de signos, imagens que faziam sentidos num sotaque que diferenciava a todos
naquela praia. Sem que pensar bem o que fazer, peguei a pistola com a mão
direita e me imaginei disparando a pistola, descarregando toda no teto, mas se
ele tivesse outra arma guardada. O que fazer nesse momento, a mão que dispara
será mão punida mais adiante, pensei. Olhei fixo nos olhos do sujeito e ele
disse de chofre “Nem pensar em hesitar, não existe alternativa na vida, ou
atira em mim, ou eu te mato com a minha outra arma.” Depois desse dia, pensei,
se sair vivo dessa, prometo, nunca mais viajarei sozinho para descansar, mas
não tem lógica, o que realmente contava era atitude do elegante homem com o
olhar distante, parecia estar no paraíso, tinha uma calma absoluta, só o
sotaque era um problema para mim. Parecia que ao mesmo tempo rezava, entoava a
linguagem com uma precisão como se fosse outro idioma. Ele começou um novo
assunto, disse ‒ “O destino está traçado, temos que aceitar o destino, eu por
ser pecador, você por ser o agente que irá cumprir esse destino, da mesma
forma, se não aceitar eu lhe eliminarei, por ser um pecador, um homem do
Ocidente, com traços e hábitos de um ateu, então, merece me matar, porque um
dia pequei, de outra forma, irá morrer, dá no mesmo. Não tem saída, senhor.”
Pensei mais um pouco, sem pestanejar com a
arma já desenfreada, ele tinha feito esse movimento técnico, porque nem esse
detalhe eu conhecia minutos atrás, mirei em sua mão contrária a da mochila e
disparei a pistola, aquele barulho seco, três tiros, um na mão, outro na perna,
o terceiro não sei onde foi. Ouvi um gemido, a voz no fundo enquanto caía da
cadeira, “Pecador, você irá morrer, existem outros além de mim, nós iremos
matar todos vocês...” O cara caiu no chão, eu chamei o dono bar, ele veio
correndo, e perguntou o que estava acontecendo, perguntou se eu tinha atirado
nele, eu, com os olhos fixos no homem, disse que sim, pedi que chamasse uma
ambulância e a polícia.
A certeza de minha liberdade foi ter
atirado para me defender do jogo imposto pelo sujeito, um cara que chega do
nada, escolhe outro de forma premeditada, mas precisa ver seu projeto vitorioso
pondo fim à liberdade dos dois. Isso tudo eu a pensar, não existia mais lógica
diante do fato consumado.
A polícia me interrogou, levaram o cara ao
hospital, depois me disseram que era um sujeito com problemas com o governo, que
tinha se metido em desvio de dinheiro, lavagem de dinheiro etc, que após sua
soltura tinha se convertido ao lado mais seguro da vida. Primeiro ficou louco,
depois religioso, agora tentava ir para o paraíso. Levar mais gente era seu
propósito.
Mas uma coisa não fecha, depois, um dia
mais tarde em conversa com o delegado, um jovem muito gentil, ele era do polícia
federal, disse que o cara tinha uma ficha criminosa extensa, tudo isso contra o
país, ele junto com alguns políticos, mas nesse meio tempo, delação premiada, liberdade
vigiada, se converteu, mas o que não fechava, o delegado disse, foi o fato do
sujeito pedir para atirar nele...qual a lógica, me interrogou... Eu respondo ao
delegado que ele era o especialista, eu apenas, um viajante cansado do
trabalho, que tinha saído lá do sul para descansar em uma praia e terminar de
escrever um livro. Meu último livro, que por coincidência trata sobre a
existência de Deus na era das redes sociais... O delegado riu e disse ‒ “Meu
senhor, parece que está plena forma do pensamento, está liberado, o problema
não é certamente com o senhor mas sim com a crença do Outro, com os fantasmas
que vivem na vida dele.”
Meu último olhar ao delegado veio junto à
lembrança de um poema do T. S. Eliot “Pensamentos cruéis comigo vêm e comigo
vão: Ruivo, rio, rio, rio.”