domingo, 30 de dezembro de 2012

Caminhar em tua blusa

                                                        Art Shay. Simone de Beauvoir. Chicago. 1952.





Nunca pedi para que amasses, quis o teu amor.
A vida não dá trégua aos que amam, aos amantes, aí é pior:
            A vida arranca os olhos,
            uma serpente vê mais que o amor,
            o veneno é fichinha perto da dor.
A sorte dos alucinados é que:
não há a dor nos olhos,
ela já está dentro em sua linguagem,
não existe mais como interpretar,
o caminhar desse jeito é
A canção que diz tudo.
As tuas pernas andam a zanzar à Terra desde
   – Todos os homens são mortais, Simone é a bendita culpada.
     
A mortalidade é uma questão de credo
E tu és o Nada – a blusa do budista – em frente à vida.
E todos os que morrem na cruz para salvar a pele,
os que matam por uma salvação,
nos prometem o impalpável.
Então, és uma mulher de todos os séculos!
Pena que os deuses não souberam disso

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Caminhar à deriva

                                                                    Guilherme Monteiro
                                                                       

O tempo não mudou, o que mudou foi a prioridade"
Mario Sergio Cortella


As pessoas escravizadas pelo conceito do trabalho limitam-se à prática da vida e não praticar a vida no seu uso mais ordinário, a de viver na busca de tudo e de nada, o de simplesmente viver o instante em cada investigação de sua subjetividade. Depois, o mais adiante é o que está em frente a si mesmo, o prático da vida. Ter essa força interna faz com que lidamos melhor a vida, é como saber ouvir o som das coisas, como saber compreender o sentido da linguagem que sai dos sons, saber flutuar nas cores existentes na palheta do pintor.
Sim, é preciso termos mais tempo no nosso tempo de pensar sem o pensamento prático, buscar um pouco mais o ato de indagar, o investigar é a esperteza que só aprendemos com a vida, com aqueles que souberam viver bem esse tempo. Aí, a importância de um dia termos andado de mãos dadas com os pais, com a nossa mãe pelas ruas da cidade escura. A noite é o silêncio que nos leva ao ato de ir ao tempo na busca da compreensão infinita das coisas, é a descoberta de que somos donos das cores do sonho. A arte é minha, o sonho é meu, enfim, aboli a filosofia prática.
                               Odilon Redon 



sábado, 3 de novembro de 2012

Livro



                      
“Eu chamo sideração, o ensinamento de uma sabedoria,
de um amor, de uma felicidade.
Em suma, uma graça.”
Emmanuel Tugny



A vida é a merda de vida e a merda é a solução para a vida.
Depois do amor,
aqui estou a te esperar, entre a dor e a vontade de fugir, te espero...depois das vidas pousadas no nada, depois do amanhecer acordar ao som dos lábios. 
Ontem, depois daquele dia, te esperei, hoje, faço as malas, arrumo os teus cabelos, te dou uns trocados, rumo ao trem, derrubo os livros, escondo o passado, passo a chave na porta e beijo a mãe de meu amigo. Parto para o Norte.
Beijo pela última vez o retrato, digo – Agora vou...com música ou sem música....com chuva e noite desapareço no cinza.
Morro de dor, mas dou um adeus sem volta,
Um retorno sem adeus, um beijo sem cor....
E aí te pego chorando entre minhas músicas.
Saio.
Fecho a porta.
Abro o sorriso, entre a dor e o silêncio nunca esquecemos aquele livro Siderado.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Mar dos olhos




Minha vida, cação-bico de ponteio, mar adentro,
Tornozelo temperado de ervas.
Flores que embebedam, passam a dor.
Caminhar fustigado, ensimesmado,
Dor de olhar.
O tempo é passagem íngreme, filamento de curva,
Olhar no certo olho, minha flor que passou, esvoaçou entre os sonhos,
Morri em Paris, morri de vê-la partir na rua a resmungar.
Fiquei.
Toda dor tem sua insignificância.


"En aquel preciso momento
el hombre estaba junto a ella en Islandia."
                                           jorge luís borges

domingo, 14 de outubro de 2012

Cinema depois da hora



"Acordados, eles dormem."
Freud

Sempre penso a vida de maneira fluxível, do longe eu vejo o perto, ao lado me distancio eternamente, como se eu estivesse partindo da Terra para sempre. É como se estivesse na luz do tempo, a sumir, clarão ao fim, uma corrida. Fuga, uma caminhada e deslizar em nuvens, nas águas, no espaço, uma sinfonia sem onde chegar, como se o acordar, o pressentir dos dias, fosse o presente dos tempos.


sábado, 22 de setembro de 2012

Infância II




“Quanto mais a arte quiser ser filosoficamente clara, mais ela se degradará
e remontará ao hieróglifo infantil; ao contrário, quanto mais a arte  se destacar do ensinamento, mais ascenderá à beleza pura e desinteressada.”
Charles Baudelaire

A cidade, próxima da fronteira, fronteira do lado, da dor dos que sonham em fugir atravessando um rio, lá atravessei, fiquei no mesmo lugar, quase morri de ver o outro lado, o outro lugar mesmo, o que tinha me jogado na água. O limite margeado de terra, a distância infinita de campos até chegar o outro lado, a Argentina, a primeira fronteira que vi e atravessei a infância. O lugar que me levou para o esquecimento do presente, ninguém foi culpado, o país era uma merda mesmo, a realidade estava repleta de vida, uma parte disso tudo era de mim, dos outros, dos que eu amava, então, pensei, aqui vou eu. A ilusão era maior que o sofrimento dos outros. Assim era esse tempo, a miséria vigiava a casa. Tempos difíceis. Queria ir embora, do outro lado do rio era o lugar da mesma margem. Afundei meus dias nas tardes de domingo no cinema. Comecei a fazer jogos do faz de conta, comecei a imaginar que as fotografias nas revistas poderiam ser uma saída mais dignificante para quem não tinha onde fugir, comecei a frequentar os sons de rádios, as letras de músicas, os poemas modernistas, as semanas de abril, os sussurros dos adultos, as vozes do além...


Assim se nomeia os lugares, pessoas que eu podia transpor ao outro lado, muito longe da minha cidade, estavam do lado da Argentina.
Me entristecia a vida daquela forma. Depois pensei – não me importo mais com nada, o agora é o retorno através do texto ao passado. Só me interessava pensar o tempo, a lonjura da vida. Se faz de tudo, se pega algo do pai, da mãe, se inventa e se ilude, se pensa que isso poderá modificar o lado das pessoas, a cabeça continua no mesmo lugar. Mudo o lugar da cama. Penso, mudo a cama de cidade, o acaso é um dobrar na esquina, e te ver a caminhar do outro lado do rio, eu aqui. Por isso pensei, ainda hei de morrer de tanto sonhar.
O que interessa é o tempo, se a verdade sempre existiu sobre o tempo, sobre as pessoas que vivem esse tempo memorialista. Onde estou: na infância?
Pois bem, depois das lágrimas, a viagem ao outro lado, infância, os textos, a leitura, a solidão, os amigos, os amores, a terra se tornou cada vez mais feia e recrudescida por aqueles tempos. A liberdade estava em meus olhos, na música, na bola, no jogo, nos livros e a poesia é que cortava meu corpo em vidas.


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Infância




“Se as portas da percepção estivessem limpas tudo se mostraria
ao homem tal qual é, infinito.”
Willian Blake

Minha infância é marcada por epifanias, revelações e desmascaramentos da vida. Nem tudo o que uma mãe diz é da vida, é real. Nem toda realidade cabia em nossas vidas, minha mãe tinha um vida olhada de outro lado do vidro embaçado, um vidro de sonho, forjado na mentira dos pais, dos pais dos pais, dos avós dos avós, de imaginários distantes. Ela sonhou com algo, depois de olhar o vidro, através da janela, o dia de chuva que traria o outro dia, e assim, infinitamente, a felicidade que ela perdeu em um tempo que não era o meu. O sonho se apagou no opaco da vidraça velha. Assim é vida na infância, a minha vida foi isso, um pouco de sonho e tristeza e alegria que esse tempo ficaria distante em breve. A brevidade da vida me fez sentir melhor na infância.
O todo é o sonho de revelar o desejo de ver o filho ao lado, não de ver o filho no mundo, “lá fora o mundo perigoso”, ela dizia, eu lembro, na minha tenra idade de cinco anos eu esperava os aviões, as nuvens fazerem um país lá do alto. O frio na cidade morta era só nosso; ainda um Paraíso Perdido, depois é que descobri que era um Paraíso Reconquistado de John Milton. Assim começa a primeira verdade, a ocultação do real. É um subterfúgio de proteção. Assim nasci. Sob a égide dos anos sessenta do século XX, que só ferrou a vida, nesta época o desconhecido não era a ciência, era a própria vida e a religião só fazia sentido porque Deus existia depois do vidro, também, lá haviam os homens do mal, esses, os que exatamente criam em Deus e me colocaram goela abaixo, misturado no copo de leite, a mentira e a verdade para o resto dos meus dias. Um paraíso a ser conquistado se anunciava, depois do longo período de privação da felicidade, assim é a infância num país em que a natureza para preservar um quintal bonitinho de moral lavada é preciso acreditar no social imposto. Um quintal no fim do mundo existia além do vidro opaco dos sonhos e lamentos, e foi preciso inventar no meu quarto, à noite, outro país para sobreviver ao sol e ao frio. Na infância foi isso, entre a morte e a vida, o primeiro ato de vida, o choro, o corte do cordão umbilical, os braços da mãe, entre a vida e a literatura, a primeira escola. O primeiro olhar para além da janela. A desilusão do mundo, lá fora era tudo tão sem vidro, sem mãe, que eu tive que aprender a tecer as nuvens na espera de um dia ir ao mundo.
(Fragmento de Baía de Corbiére)


domingo, 26 de agosto de 2012

O equilíbrio



“Não se trata, para mim, de opiniões, mas de necessidades.
Não se pode ter o ideal da sinceridade e mostrar apenas os lados bonitos,
as partes imponentes de seu ser.”
Hermann Hesse



As mãos ensanguentadas dizem tudo, minhas mãos assassinas dizem nada,
Eu percorro a vida como se fosse a morte,
Caminho em cima dos teus ombros como se fosse a última noite de bebedeira,
Um sorriso em tua nuca, os cabelos em minha boca,
a língua esconde o tempo das paredes envelhecidas.
Dos teus olhos, de tua boca sedenta, os lábios sem dizer adeus,
eu que me afundo em noites sem fim.
Eu misturo o fumo com a guimba, os restos da solidão em dor.
Eu nunca digo que te esqueci.
Não misturo a dor com a solidão de uma noite.


quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O Texto e o Criador do Texto




O mundo consta da sua matéria total. Pois, não é possível existir outra terra diferente desta, porque qualquer outra, onde que se achasse tenderia para o centro desta.
Tomás de Aquino




  O movimento permanece ininterrupto, só as mãos, absoluta do Nada, o poder de manipular as coisas, um comando do cérebro e a língua brota da tela, um comando dos nervos, a tela se move em imagens. A imagem úmida não diz nada além daquilo que o desejo de molhar o mundo com coisas menos imundas é nascedouro do texto.
    O texto tem seu movimento, o mover não é único, como se existisse um apenas, um primeiro movimento, um Deus em sua unidade da ordem e que todas as coisas pertençam a um só mundo. Aquilo que eu chamo, às escuras, roubarei a máxima de Tomás de Aquino para sobreviver ao texto que não chega ao fim.
    O fim é sempre um começo, mas ao contrário do filósofo, a ordem não  é legitimada pelo texto fundador.
  Hoje o texto é a não unidade das coisas, o texto é a não unidade de um exemplar único no mundo. Hoje, o mundo, esse exemplar é o texto estilhaçado em muitos mundos, o porquê das coisas de não terem apenas uma unidade, um entra e sai ao mesmo tempo das unidades contrariam a ordem do criador.
      



sábado, 18 de agosto de 2012

Sonho Roubado





“E que cheiro que sai dos nervos dele,
Embora o caio roído, cor de brasa,
E lhe doa talvez aquela pele!”
(O muro – Pedro Kilkerry, 1921)

Meu sonho era só teu, minhas lágrimas ficaram entre o travesseiro e o frio,
A vida disse nada
Ao redor ela dormia,
As mãos foram diretas em minha alma,
A salvaguarda do passaporte,
A identidade nua,
Minha própria pele longe da morada do Ser.
A ladra dos sonhos.
O silêncio em teu corpo era a distância entre a Gare Montparnasse e Saint-Malo.
Um trem que se perdeu no mar.
Minha dor foi eterna, eu dormi até o fim da viagem.
Nós dormíamos, os teus cabelos escuros em minha noite,
O cheiro de cigarro na casa, o vinho derramado,
As tuas ancas ficaram frias, fugiu de mim, ao longe,
A sonoridade das cores, as louças e as chaves desapareceram.
Acordei em lágrimas, acordei o silêncio com a dor, a casa saqueada,
Como a noite, a tua música matou o escuro, congelou meu sonho.
Acordei em ti, perto dos teus ombros, o tilinto do sono ao nosso redor.
Sorri para a manhã chuvosa.
Paris respirava comigo, pouco importa se tinhas partido.
Os amigos cuidam do café e o sol do outro lado da cidade silencia a noite.



quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Peixes da Vida




“Acordados eles dormem.”
Heráclito

Os velhos barcos e os mares são perdições.
Nem toda alma sobrevive aos sonhos dos embarcados,
Nem todos afundam com os peixes abandonados nos porões dos sonhos.
Um peixe colorido é o olho para o Ser, um peixe veloz é a voz dos sonhos,
Eles são os únicos que conseguem sobreviver aos arpões da vida.
A merda é quando a vida se disfarça de morte e vem perseguir os velhos marinheiros. 




sexta-feira, 29 de junho de 2012

Todas as mãos são mortais


“O corpo humano tem cabelo. O corpo humano tem boca. O corpo humano tem órgãos genitais. O corpo humano é criado do pó e, quando esse corpo humano não existe mais, volta ao pó de onde veio.”
                                                                                Paul Auster



       Eu não me olho no espelho tanto quanto o que olho em minhas mãos. A vida! As mãos denunciam tudo, vida, o tempo da gola da camisa, o tempo de minha janela envelhecida, o tempo do mofo nos bolsos e nas mãos. O tempo em minhas mãos é mais forte do que olhar o próprio perfil no espelho, a flacidez é a circunstância entre o início e o fim, é mera luz entre a ideia do tempo e a velocidade do envelhecimento. A barriga é circunstancial, ela não tem rugas, tem sinais, cortes, tem resquício da vida na morte, mas isso é sinal de vitória. É o presente que ganhei no final dos trinta, o início dos quarenta foi o começo, as mãos davam amostras dos sinais, outros signos do tempo, das rugas. As rugas e o tempo acompanham minhas noites. A calvície está longe dos olhos, os cabelos brancos convivem bem comigo, é mais um sinal de que conviver por muito tempo é perdurar as guerras, sobreviver junto comigo todos estes anos, o Conde Fosca: o tédio de ver o tempo das mãos.
       O rosto é solidário com a impressão digitalizada, com as noites acordadas, com o sono profundo na solidão, por isso o rosto é mais resistente do que as mãos, ele está mais propício à luz solar, mas tem o meu cuidado, os olhos agradecem sua deficiência, a miopia, o cansaço etc. Já as mãos diante da vista, mais do que um espelho em frente do Conde Fosca, por isso essa intimidade ininterrupta que nem ampulheta, uma conversa que se perde no fio do tempo, só de pensar, estou envelhecendo, a voz ressoa meus pensamentos.
       Seu eu fosse um pianista imortal certamente não perceberia as rugas com frequência, mas sentiria a agilidade dos dedos no teclado infinitamente, existiriam outras preocupações comigo. Minha música é outra, é o ofício de ouvir, de ler, de poder respirar, cadenciada a vida, enquanto nado, como se o tempo não morresse. Meu esporte preferido, natação, mostrou-me a evidência das mãos, do ressecar da pele, o uso constante de cremes, os olhos se voltam às mãos. Esse ato do nadar me levou a outros momentos da vida, me reporta à solidão, e como poderei viver ao lado dela sem procurar apoio das paredes? Grupos de humanos, por mais demasiado humanos, escalam o mundo, eu sou outro humano, o ato de nadar me jogou à ideia: e que a solidão faça da imortalidade o que ela fez com minhas mãos. Um dos componentes que o corpo deve ter para nadar com precisão, a agilidade, o movimento das pernas, os pés ágeis, o mover na água, mas o que eu vejo são as mãos na velocidade do pensamento.
       A solidão acompanha-me desde a adolescência, já fui à guerra com a solidão, quase morri. O medo do abismo é um fim na solidão que desconhecemos. Recuperei o que restou de mim, inventei novamente um olhar, formas de leitura, de perdição noturna, mas lá estavam as mãos, ao lado do tempo, sem perder ou ganhar, resiste ao tempo. A solidão é parte da vida, da alegria, das leituras, das guerras vividas e dos confrontos do cotidiano.


domingo, 3 de junho de 2012

Paul Auster - Sunset Park


Um fragmento do romance de Paul Auster, Suset Park, Companhia das Letras, 2012.
Tradução de Rubens Figueiredo


“Tangibilidade. Essa é palavra que ele mais usa quando discute suas ideias com os amigos. O mundo é tangível, diz ele. Seres humanos são tangíveis. São dotados de corpos e, como tais corpos sentem dor e sofrem doenças e são atingidos pela morte, a vida humana não se alterou, nem por uma fração mínima, desde o início da humanidade. Sim, a descoberto do fogo tornou o homem mais aquecido e pôs fim à dieta de carne crua; a construção de pontes permitiu que ele atravessasse rios e córregos sem molhar os dedos dos pés; a invenção do avião lhe permitiu saltar de um continente para o outro e transpor oceanos, ao mesmo tempo que criou fenômenos novos como jet lag e o cinema a bordo – mas ainda que o homem tenha modificado  o mundo a seu redor, o próprio homem não mudou. Os fatos básicos da vida continuam os mesmos. Vivemos e depois morremos. Nascemos do corpo de uma mulher e, se conseguirmos sobreviver ao nascimento, a mãe terá de nos alimentar e terá de cuidar de nós a fim de assegurar que continuemos a sobreviver, e tudo que acontece conosco desde o momento do nascimento até o momento da morte, todas as emoções que brotam dentro de nós, todos os rompantes de raiva, todas as ondas de desejo, todos os ataques de lágrimas, todos os estouros de riso, tudo aquilo que sempre vamos sentir no decorrer da vida também foi sentido por todo mundo que veio antes de nós, sejamos nós um homem das cavernas ou um astronauta, moremos no deserto de Gobi ou no Círculo Polar Ártico. Tudo isso lhe veio ao pensamento numa erupção epifânica e repentina quando tinha dezesseis anos.” (p. 69-70)


segunda-feira, 28 de maio de 2012

Paul Auster, Sunset Park



"Onde está agora? Com um pé de cada lado da fronteira entre a extinção inevitável e a possibilidade de continuação da vida"
Paul Auster




Paul Auster, Sunset Park é uma viagem a todos os imaginários que Auster soube construir em outros livros, não falta digressão filosófica, fotografia, cinema, literatura na literatura, homem no homem, cotidiano no cotidiano, humanidade perdida ao encontro vão de encontrar algo para se sair do atoleiro. Não falta musicalidade em sua escrita, o som das palavras soa aos atentos ouvidos notas musicais a sair de páginas desavisadas da vida a molhar os olhos, mesmo que tristes se alegram com a escrita fotografada no tempo dos personagens. É um voltar ao mundo sem a preocupação com a tecnologia, mesmo sabendo que tudo é tecnologizado, ler Auster é ficar parado no tempo com a tecnologia a meu dispor, sem perdê-la. Só usá-la quando termino a leitura. É mais ou menos a mesma sensação quando leio Heidegger; é o estar no tempo sem nunca ter me separado do tempo que não vivi, mas que sei ver como se vê a imagem que cruza ruas, lá onde caminho no frio, no calor, em todos os ângulos, mas por trás de tudo, existe outro olhar. Ler Auster é dádiva em um domingo que chega ao fim, ao sol que penetrou na pele como o texto que colou o corpo de impressões, que refez os olhos descansados da dor até findar a página.



sábado, 14 de abril de 2012

Baudelaire, o cômico

Tóquio pós-apocalíptica - Hisaharu Motoda


Eu os ofenderei talvez suas convicções de paisagistas, mas lhe direi que a água em liberdade é, para mim, insuportável; quero-a prisioneira, na canga, nos muros geométricos de um cais.”
Charles Baudelaire

Grotesco, é o que Baudelaire significativamente fez reflexão, o que Benjamin lembrou o “cômico absoluto”, o oposto da comicidade com significância. Para um flâneur, lembrar que o significado das coisas tenha o exato sentido do que elas são, é como precisar o voo de um pássaro em tempos de razão desasada. Ninguém mais fala da cínica, da razão, aquela que foi o medo, o alarido dos porta-vozes do conhecimento. De outro lado, ainda persistem os carimbadores da cultura no Sul do Sul do mundo, no Rio Grande do Sul, ainda eles continuam sem compreender bosta nenhuma da verdadeira ironia da vida. A literatura é o pensar de paisagista, o pensamento por onde andou e a filosofia com convicções. É a literatura que colocou a filosofia em uma caverna da linguagem. A filosofia não tem nada a ver com seu voo raso, deixamos de voar pela própria técnica que nos fez ir mais longe. Longe de todas as possibilidades. Os dois movimentos nunca sacaram nada do que um dia Baudelaire soube, nem do que Benjamin nos disse que o Outro, o sabedor das imagens do cotidiano, o que Baudelaire legou aos irônicos da linguagem. 

                                                                        

terça-feira, 3 de abril de 2012

Dialética no Século XXI



Parte 1:
O assalto da vida é como o assalto de um homem morto que reza para não acordar e sonha para roubar a vida que não lhe pertence mais. Então, quem matou o sonho do morto?
Parte 2:
O homem continua a morrer sem dar tréguas ao erro. Ele percorre as tempestades dos mares, corre o samba da vida para não acordar na solidão.
Parte 3
A sorte não o abandona antes do nascer do dia. O homem percorreu seus sonhos em vão ou perseguiu o sonho de outro homem?


domingo, 18 de março de 2012

Caminho



Minhas mãos ensanguentadas dizem tudo, minhas mãos assassinas dizem nada, eu percorro a vida como se fosse a morte, eu caminho em cima dos teus ombros como se fosse a última noite de bebedeira, dos teus olhos, da tua boca sedenta, dos lábios sem dizer adeus, eu me afundo em noites sem fim. Eu misturo fumo com a bagana, com a solidão de tua dor, eu nunca digo que te esqueci.
Não misture dor com solidão.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Acordes da linguagem


                        António Paim
Fujo do gerúndio como a expressão mais hegeliana do 
Ocidente foge de um acento − idéia é ideia − e não se discute mais, aliás, se recorta sempre as asas das leis punitivas que dizem que escrever como se escrevia no século passado, hoje, será punido.
    Enquanto isso, na escola tecnológica boa parte do mundo escreve com se nunca existisse língua nenhuma, se inventou uma linguagem para não se dizer nada. O mundo é o resquício daquilo que se pensou, que “linguou”. A linguagem é a melhor definição para se pensar, para esquecer, mas nunca é a melhor maneira para deixar morrer o português. Já o fim do livro, isso não me interessa, deixo aos editores e livreiros saudosos do cheiro do papel.  


sábado, 28 de janeiro de 2012

Depois da hora


Minha vida, cação-bico de ponteio, rio adentro,
Tornozelo temperado de ervas.
Flores que embebedam, passam a dor.
Caminhar fustigado, ensimesmado,
Dor de olhar o tempo, passagem íngreme, filamento de curva,
Olhar no certo olho, minha flor que passou, esvoaçou entre os sonhos,
Morri em Paris, morri de vê-la partir na rua a resmungar.
Fiquei. Toda dor tem sua insignificância.

  

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Muro-imagem


A lembrança pura é a cada vez um lençol ou um contínuo que se conserva no tempo.
Gilles Deleuze
A luz da tua imagem é pífia diante da não imagem
Do acontecimento resta o olhar na fotomensagem.
Pensei nas imagens do instante, cheguei apenas ao Olhar
Uma imagem para além, antes de Resnais
Nunca pensei mais depois,
Tua imagem é um Muro de memória-mundo
Mundo dos cafés, dos Muros a velocidade do tempo.


Passagens

        Brassaï - Pont Neuf, Paris (1949)     “ As ruas são a morado do coletivo.” Walter Benjamin “Na praia, o homem, com os braços cru...