segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Lisboa e o fim das Imagens


Asas do Desejo- Wim Wenders







“Que o homem seja libertado da vingança.”
Nietzsche

Os estilhaços do cristal do cálice foram direto aos olhos de Suzana. Um grito seco ouvi. Enquanto subia as escadas do velho prédio meu pensamento foi direto ao acidente, numa queda as coisas podem mudar para sempre. Corri até a porta e entrei. Lá estava ela atirada no meio do quarto, nua, com um corte na altura dos olhos. Alguma coisa sangrava. Estava ferida. Ela chorava e dizia ter tropeçado em algo e não enxergava nada. Nada. Proferi com lágrimas nos meus olhos para toda Lisboa ouvir.
Lembro de ter acordado ao lado dela no quarto do hospital. Tinha sido um susto. A partir daquele momento não voltamos mais a mesma cena, ao tempo que nos levava ao lúdico, porque ela ficaria direto no hospital. Eu voltei para casa sozinho. Retomaria minha vida. Os pais dela estavam chegando. Eu tinha conseguido a cirurgia. Meus estudos, pesquisa para o próximo livro e meu trabalho me absorviam o dia todo. À noite me restava ficar em casa lendo, tomando um vinho, e de vez em quando sair para algum bar sozinho pela Lisboa. O fato de ela ter caído no quarto foi o motivo de nossa história terminar para ela. Me senti aliviado. Não suportava a idéia de ser mais do que um namorado, seu parceiro de viagem, homem bom que cuidou do tratamento médico em Portugal. Absolutamente nada nos uniria mais depois de eu ter lido em seus pensamentos que não existia espaço para a cumplicidade alguma daí em diante. Apenas as lembranças. Sua voz em minha solidão.
—Por que não vem aqui ver como está o meu corpo. Me beijar e depois cuidar de mim? Chegava ao seu lado, tocando seu corpo, mordendo sua voz, olhando seus olhinhos que brilhavam de desejo, de tesão e ela dizia em tom de protesto: — Você ainda irá cansar de me comer ouvindo essa música.
Eu não me cansava de estar ao seu lado. Transávamos e noutro dia, tudo se repetia. O cotidiano de nossas vidas era matar todos os mitos em cada sol que surgia, em cada chuva, em cada mudança de humor e nos textos que andava lendo na época. Agora sozinho eu tinha dimensão das decisões, e do que eu não me importaria mais olhar para trás, não por ela, mas por aquilo tinha vivido ao lado de Suzana. Não haveria problema nenhum de me mudar de cidade, por enquanto Lisboa era a parte do meu mundo.
Minha rotina foi alterada. Todas manhãs fazia uma hora de caminhada e logo me tocava para a universidade. Do meu gabinete dirigia a coleção de livros de filosofia contemporânea, uma homenagem ao Bataille, Col. A Parte Maldita, que era uma co-edição com uma editora brasileira. Era daqui que eu tirava minha grana mesmo. Com isso eu e a Suzana gastamos além da conta durante aquele período. Não mais agora. Não mais ao meu lado, mas todo o tratamento eu assumi. Com isso ganhei minha liberdade e a perdi para sempre. Tudo em nome da liberdade de nossas vidas.
Lembrei disso: Gostei disso na boca de uma quase-cega. Um cego, de fato, não apalpa mais as imagens. Ele apalpa as coisas, terrivelmente concretas.

domingo, 11 de novembro de 2007

Andaluzia



Foto: Sophie Calle












Ali está o corpo da mulher
Linda, se confunde com fragmentos de um poema,
Com os passos de uma bailarina.
As mãos gesticulam, as pernas contornam a alma.

O riso de Andaluzia percorre a sala em passadas na dança frenesi. Do açoite da chuva fria
A madrugada respinga no fogo que se mistura ao incenso.

Ali está a noite dos sonhos compartilhados
Entre loucos, tristezas, vozes sobre o nada.
Ali está o tecido da vida
Cobrindo as diferenças das desilusões,
Queimando o dorso da dança na pele
A faísca da voz como cello que se perde
Entre os olhares do vento que desnuda o vazio.

Ali está quem nos espia, fera solitária, foge da solidão.
Embebida no vinho que escorre corpo adentro
Feito esperma.

Ali está a mulher, linda, feito noites de Andaluzia
Percorre a sala em sua dança,
Corta o fogo e o silêncio falando da infância.
Com suas pernas de poesia silenciosa
Que decifram os olhos da chuva fria, ali está a mulher.

Ali está a noite dividindo o fogo,
Um pouco da solidão, o vinho entre dedos
Que mancha com as vozes, a fumaça do incenso.
Ali está os passos vagos como o riso
Que espia a precisão das palavras da poesia

Ali está o vento soturno
Dando trégua a todos que se cruzam em noites bêbadas.
Ali está o som, as quebras e as partes
Rasgando nossas vidas como facas
Que imolam as tristezas no sapateado
Da mulher que ali está.

domingo, 4 de novembro de 2007

Lisboa


Foto: Sophie Calle

"Todo zonzo e descabelado, todo bobo de felicidade, todo turvo de sexo, de pele e de idéias sobre minha nova vida." Paul Auster em O Livro das Ilusões





Ando perdido, perdido nas palavras impronunciáveis, em rastros deixados pelos signos. Ando ao encontro da perdição do Ser. Vagalumeando encontro-me nas páginas de um Auster até o amanhecer.

Aquilo já era tarde pensei. Suzana ainda estava dormindo. Chegou cansada de nossa viagem pelo interior de Portugal. O carro que nos trouxe, aliás, um motorista que fora emprestado pelo diretor da Universidade Livre de Lisboa. O motorista particular do diretor ficou vigiando-nos durante dois dias seguidos. Mais parecia um policial da migração olhando nossos passos. Nos levou de Lisboa até Porto. Nos divertimos. Suzana estava feliz. Por dois breves dias tinha esquecido o transplante de córneas que teria que fazer. Aceitei o convite de ser pesquisador para ficar ao lado dela, já que eu tinha conseguido um tratamento adequado aqui. Ela não poderia ficar sozinha em Londres esperando que alguma coisa acontecesse. Nada mais aconteceria na vida dela que não fosse a medicina e nem meu dinheiro já era suficiente para dor e dispersão diária dela. Não havia lamento naquela mulher. Havia um olhar perdido a cada manhã.
Chegamos 19 horas. Ela tomou banho e foi dormir. Eu tive tempo de ler os e-mails, entrar no msn e parti para derrubar a terceira garrafa de vinho tinto português comprado na viagem pelo interior daquele país fascinante. Lembrei do filme do Win Wenders, de Madredeus tocando no cd do carro. Ali Suzana, linda, seminua, tudo transparente, sem calcinhas, as formas do corpo, seu cheiro exalando nosso pequeno studio, um estilo de loft improvisado mas aconchegante. Um computador pra ela, meu notebook, uma escrivaninha apenas para ela, minha mesa pequena. Os livros atirados, as roupas dependuradas e um armário só para Suzana. Tudo ao dispor de sua infinitude. Dá vontade de não se perder na escuridão, catarolava ela num pequeno poema que tinha dedicado aos seus olhos. Logo Suzana, de lindos olhos prestes a cegar. Tanto importa dizia, queria mais ficar ao lado da vida do que qualquer outra pessoa naquela cidade.
Justamente eu que estou trabalhando com imagens, com os signos transpostos da escrita para o cinema, ou do que foi filmado. Resgato esses signos, ao mesmo tempo, que busco a cura da Suzana e a escrita nos alimenta. Um estudo fenomenológico da imagem. Suzana deitada. Ela desperta e no exato momento toca Satie, “Gymnopedies” bem baixinho, justamente para não acordá-la, mas ela me sorri, e pergunta:
— António como é mesmo o nome dessa música linda, Trois Gymnopedie? Aprendi a gostar de coisa assim, na lentidão das folhas que caem, como você costuma dizer. Mas o que mesmo significa essa música, qual a origem? Você já me contou mais de uma dezena de vezes, mas cada vez que conta, sinto vontade de poder dançar novamente, mas já não me sinto segura tanto assim. Estou cada vez mais longe das imagens, como se elas não fossem mais papáveis. Só você consegue uma coisa e vem e me trazer elas de volta. Como posso sentir tanta coisa agora, logo agora que tenho medo?
Fico olhando Suzana, falando sem parar e dizer tudo isso, um reclamar que se renova nas manhãs que ela sente o fim de sua dança. Ainda resta vinho e eu digo que não era para se preocupar que no presente momento restava sete garrafas e que tinha ido numa delicatesse enquanto dormia e comprara uns vinhos com a primeira grana do mês recebida. Minhas economias dariam para um bom tempo caso não tivesse vindo a Lisboa e tivesse ficado no Rio enquanto via a distância Suzana sozinha em Londres.
Ela deitada, agora de bruços e conversando comigo, com as pernas para cima, os pés como se tivesse nadando, pedia um cálice. Sua bunda linda, erguia o braço pra pegar o cálice e pedia um beijo. Sempre a mesma pergunta
— Você acha que seremos felizes, ainda mais um tempo, mais do que o que resta para mim? Será que vai deixar de olhar para o meu corpo pra olhar para outra vagabunda?
Eu sempre respondia a mesma coisa. Depende da circunstância, se eu tivesse com uma arma na cabeça apontada e alguém me dissesse, esquece a Suzana se não você morre. Eu diria. Sim, esqueço. Não posso lembrar de quem não está mais ao meu lado. A vida sempre foi assim pra mim. Sempre amei aquilo que está ao meu lado. Me torno um escudeiro, um lobo feroz protegendo sua fêmea, seus filhos, seus, porque não tinha filhos. Aí ela ri e diz: - Você sempre recusando o destino com a tua velha mania filosófica do Acaso, da entropia..etc..e tal.

Passagens

        Brassaï - Pont Neuf, Paris (1949)     “ As ruas são a morado do coletivo.” Walter Benjamin “Na praia, o homem, com os braços cru...